Para alguns escritores e compositores, músicos e poetas, a fronteira entre Brasil e Uruguai não é um local de divisão, mas de junção. De convergência.
- É o lugar em que se fala uma língua estranha a uruguaios e a brasileiros de quaisquer outras regiões - define Chito de Mello, "doble-chapa" de Rivera-Santana do Livramento.
Chito tem 67 anos e sete discos gravados, todos de maneira independente, com download gratuito disponibilizado em chitodemello.blogspot.com.br. Assim como ele, o escritor Aldyr Garcia Schlee (de Jaguarão-Río Branco), o poeta Fabián Severo e o músico Ernesto Díaz (ambos de Artigas-Quaraí) são figuras de destaque no curta-metragem documental A Linha Imaginária, que os pelotenses Cíntia Langie e Rafael Andreazza (os mesmos do longa O Liberdade, sobre o bar homônimo de choro) lançam às 20h deste sábado na Sala P.F. Gastal, em Porto Alegre.
E estão longe de ser os únicos. Antes deles, nomes como Agustín Ramón Bisio (1894 - 1952) e Olyntho María Simões (1901 - 1966) exploraram a linguagem, essencialmente oral, usada na fronteira para criar obras líricas e originais. Os descendentes de suas ousadias atacam em várias frentes: enquanto Chito de Mello tem um discurso próximo daquele usado por ícones do regionalismo, como Gildo de Freitas, Fabián Severo faz lembrar Vitor Ramil em seus tratados sobre o vazio da vida em um lugar em que a própria língua materna não é lá tão familiar.
- O portunhol é a minha verdadeira língua materna. É aquela que eu escutava quando estava no ventre da minha mãe e aquela que aprendi a falar nos primeiros anos de vida, antes da alfabetização formal. Quando estou sentimental, uso o portunhol. É o idioma mais urgente, o dos meus afetos - explica Severo, que é autor de três livros de poesia nesta língua inventada: Noite nu Norte (2010), Viento de Nadie (2013) e NósOtros (2014).
Além dessa forma instintiva de se expressar, o portunhol (ou "espaês", ou DPU, abreviação de "dialeto português no Uruguai") tem uma musicalidade própria.
- E varia em cada região - complementa o poeta. - O meu portunhol é mais espanhol do que português. O do Chito é o contrário. Minha escrita é diferente das composições do Ernesto Díaz simplesmente porque somos de bairros diferentes de Artigas, além de pertencermos a gerações distintas.
Talvez ainda mais do que o português e o espanhol, o portunhol é vivo. Altera-se com o passar do tempo e os deslocamentos das pessoas - o que, em uma fronteira em sua maior parte seca, sem rio, se dá de maneira bastante natural (lembra do filme O Banheiro do Papa, na região de Melo-Aceguá?).
Conta Chito de Mello:
- Aqui, quando alguém quer ouvir a música mais alto, grita: "Alteia o volume que não ouvo". O que mais se escuta nos bares é freguês pedindo "um pancho e uma cerveja", assim mesmo, "pancho" em espanhol e "cerveja" em português.
As músicas de Chito são a melhor introdução à lógica gramatical da mistura. No seu blog, o cantautor disponibiliza suas letras como quem quisesse apresentar essa lógica às pessoas ("Ali até quem está no Japão pode me ler e ouvir", diz). Diversas canções são verdadeiras cartas de apresentação - dele e da língua inventada.
"Yo nací nuna frontera", escreve em La Riverense, ele mesmo grifando algumas palavras. "Donde se juntan dos pueblo/ Y se fala misturáo/ Con sotaque brasilero/ Donde se cantan milongas/ Sambas, tangos y boleros/ Al ómnibus llaman: bônde/ Y los duraznos son: péscos".
Fique ligado:
O documentário de 26 minutos A Linha Imaginária terá sessão de lançamento, com a presença dos diretores, neste sábado, às 20h, na Sala P.F. Gastal. O filme também pode ser visto no domingo, às 19h, no mesmo local.
Trechos
"Me han criticado
En varios lado
Porque he cantado
Abrasileráo
Que 's erejía
Pronunciar sía
O que ´n Bahía
Fuí bautizáo
Querido hermano
Montevideano
No soy bayano
Tás engañáo
Soy de Rivera
De la frontera
Donde cualquiera
Habla entreveráo
Soy fronterizo
Medio mestizo
Sin compromiso
Desde gurí
Tengo mi doma
No canto en broma
Soy Romp'idioma
Y no toy ni aí"
> Chito de Mello
Cantor e compositor, na música Rompidioma
"Na frontera
ranyos de basura
i niños de tierra,
perderoum la palabra
Nu invierno da yente
ásves alguien se enamora
De ves incuando
nase uma flor entre us fierro
ensusiando la primavera
Intonse
como um resto de pan
la gente sindurese"
> Fabián Severo
Escritor e poeta, no livro Viento de Nadie
"En la frontera hablamos diferente
Los literato quedan asombráo
Si es en Santana se dice: cemente
Pero, se miya en el otro la ´o
Y da lo mismo pollera que sáia
Y es un lagandáia cualquier relajáo
> Chito de Mello
Cantor e compositor, na música La Misturada
Palabra Torta
(um poema inédito de Fabián Severo)
"Asvés
toi lembrando la tristeza
que había en mi tierra
y las palabra van saliendo
una arriba de otra
intreveradas.
Hay días
que intento inderesar ellas
mas no puedo
impesan a perder el olor
a quedar seim vida
puro oso sin carne
morrendo en mis cuaderno.
Mas otras vez
yo las dejo asím
tortas
y intonce
volto a tener diez año
y ando descalzo na calle
correndo con la Gabriela
ayudando la María arrancar laranya
y me sinto menos triste.
Misqueso que afuera el mundo es de tardisiña
vuelvo a tener los sueño que tenía
cuando caminaba nu meio das pedra
sin saber que las palabra tenían dueño
y el mundo era todo mío"