Leo Felipe era um pacato bancário de 19 anos e gel no cabelo quando conheceu Ricardo Kudla, 18. Estava na estrada, pedindo carona para a praia, quando, relata em A Fantástica Fábrica, encontrou "aquele ruivo que saltava de paraquedas", tocava "uma guitarra purple bizarra na banda Brigitte Bardot", trabalhava numa empresa de óleo de soja e já lidava com computadores (em 1992!).
Era o ano em que o Nevermind (do Nirvana) atingia o nº 1 do chart da Billboard, e a Avenida Osvaldo Aranha como a conhecíamos dava um último suspiro antes da "limpeza" que mudou o Bom Fim. Era o ano em que os então adolescentes (quase isso, vai) Leo e Ricardo fundavam o Garagem Hermética.
A história do "melhor e mais chinelo" bar de Porto Alegre está detalhada em A Fantástica Fábrica, livro que Leo começou a escrever há 10 anos e que lança nesta terça-feira, em confraternização das 18h às 21h, no Ocidente, dentro da programação da 7ª FestiPoa Literária, que começa hoje (veja texto na página ao lado). É o mesmo projeto (tão mítico quanto Tanso, que o escritor e frequentador do Garagem Daniel Pellizzari promete sobre a Osvaldo de 1992) que levou Leo a criar um blog para adiantar alguns trechos e, assim, testar a reação do público diante do material.
É que, não tinha outro jeito, as memórias do "Velho Garagem" envolvem sexo, drogas e bebedeiras vivenciadas por pelo menos duas gerações de jovens cheios daquela energia que o autor sintetiza simplesmente como "roquenrol".
- Quando comecei a escrever, não imaginava o texto publicado - ele explica. - Nunca houve a baboseira de "escritor atormentado se livrando de seus demônios", mas eu realmente queria tirar aquelas memórias de dentro de mim. O que importava era, de fato, escrever a história. Quando recomecei o texto, depois de um longa parada, eu mesmo me espantei com a crueza das descrições. Mas já não tinha mais volta. Por isso, quando editei o material, recusei me autocensusar e mexi o mínimo no texto.
Bem entendido, "Velho Garagem" é o bar que Leo e Ricardo (e Marcos "Murruga" Cardozo, no iniciozinho) gerenciaram entre 1992 e 2000 - o ano da venda e de sua reforma, para voltar asséptico, menos inconsequente e mais responsável, até morrer definitivamente em 2013. Artistas, cineastas, músicos, estudantes e quem mais tivesse um dedinho do pé no underground, na Porto Alegre da década de 1990, tem alguma história envolvendo o casarão da Barros Cassal, quase esquina com a Independência. Seja essa história sobre os trash-pornô de José Mojica Marins projetados no pátio na festa Cinemeando no Garagem ou sobre o terror que era aguentar as músicas que o DJ Drégus de Oliveira pescava no cancioneiro brega nas noites em que sofria de dor-de-cotovelo.
O despojamento de A Fantástica Fábrica (referência ao clássico de Roald Dahl) é só um de seus pontos fortes. Mitos são desfeitos (o Garagem já vendeu sushi, sim, e o bêbado que certa vez caiu da escadaria na entrada "apenas" desmaiou, mas ainda está vivo). A narrativa é envolvente graças à precisão das descrições e à capacidade de rir de si próprio (e dos outros, que é para manter o tal do espírito roquenrol). Às testemunhas da história, o texto flui com a rapidez com que se visualizam as lembranças mais extraordinárias.
Diz Leo:
- Olho para trás me espantando ao perceber como tudo era tão punk, sujo e decadente. A sensação que fica é: ufa, ninguém morreu!
Relatos de alguns sobreviventes:
O "Velho Garagem" por músicos, cartunistas, atores - seus frequentadores, ou sobreviventes, como define o músico e ilustrador de A Fantástica Fábrica Diego Medina. Todos são citados no livro. Drégus de Oliveira, DJ da casa, é chamado por Leo Felipe de "Cliente nº 1". O depoimento de Daniel Galera está no prefácio.
O Garagem Hermética não foi só um bar; foi um vulcão com lavas incandescentes que nos presenteou com nosso melhor e nosso pior, na condição de artistas inquietos e malucos. Éramos pura poesia; poesia sublime e poesia dos calabouços. Éramos pura beleza; beleza mágica e beleza das trevas. O Garagem nos fez desbravadores de um espaço além mídia, além conformismo, além comercial de margarina. Foi lá que revolucionamos e nos revolucionamos, nos pensamentos e nas atitudes, dando a cara a tapa sempre. Lá, no meio daquelas paredes inadequadas, fomos deuses, visionários e pessoas comuns. CLÉO DE PÁRIS, atriz
O Garagem era uma doideira linda. Um amontoado de gente incrível, com shows inesquecíveis, festas que duravam até o dia amanhecer, um pátio mágico que dava dor de cabeça aos vizinhos e dois sócios para lá de Marrakech. Quem viveu (e sobreviveu) sabe. DIEGO MEDINA, músico, ilustrador
O Garagem foi o maior antro de perdição de Porto Alegre, a pequena Sodoma e Gomorra de um séquito depravado inesquecível. E o palco da cena mais hilária da cena local: a noite em que, depois de muito xaropear, o notório Marcelo X levou um chute na perna de um indignado Leozinho (Felipe), numa finaleira de noite. Até aí nada demais. O que Leo não sabia é que Marcelo tinha uma prótese na perna. Nunca esquecerei da imagem da perna voando em câmara lenta, e o pavor atrás dos óculos do delicado dono da birosca! Coisas que só acontecem em Porto Alegre. EDU K, músico
O Garagem tem muito a ver com magia. Para mim, tem muito a ver com o movimento místico e de ocultistas do século 19: Allan Kardec, Eliphas Levi e Helena Blavatsky também se encontravam no Garagem Hermética da sua época, onde uniram suas ideias e sua energia. Com o Garagem foi assim: nos uníamos em um antro de poder cultural que, antes, não existia na cidade. CARLOS FERREIRA, cartunista
O bar abriu quando eu tinha 20 anos e fechou quando tinha 29: os meus anos 1990 são definidos pelo Garagem. Eu era parte do Móveis & Utensílios da casa; comecei como cliente, acabei montando banda e fazendo show no palco, apresentando programa de auditório, produzindo festivais fajutos e, de tanto de meter no som, fui discotecar. Que bom que a gente teve o Garagem. Foi uma sorte que Porto Alegre teve. DRÉGUS DE OLIVEIRA, montador, DJ
O Velho Garagem faz falta, mesmo com sua precariedade de som e luz (luz?). Depois que o Beco parou com os shows de bandas autorais e casas como o Dr. Jekyll e o Novo Garagem fecharam, as opções ficaram reduzidas para as bandas de Porto Alegre. Os bares estão voltados para festas pop com DJs, e parece que o próprio público perdeu o interesse na música daqui. Era esse o trunfo do Garagem: shows sextas e sábados, casa cheia, divulgação à base de flyers e lambe-lambes. Acho que deu certo porque ainda não havia sido inventado o "CDJ"... EDUARDO NORMANN, músico
(...) Era uma noite de quarta-feira de 1999. Fazia frio. Chovia. Eu e a Gaby (amiga) saímos bebaços de algum bar infecto da Cidade Baixa às 2h30min e por algum motivo (idade) decidimos que se fazia necessário ir ao Garagem. (...) Encontramos o combalido sobrado ocupado por oito ou 10 mortos-vivos. Estava tocando uma banda cover de Smiths. A gente se atirou no clássico "sofá do Garagem" e ficou ali, bebendo Polar quente até, sei lá, umas 4h.
(...) Se soou sem graça, é porque o leitor nunca pisou no Velho Garagem. Porque essa noite representa o que o Garagem representou para a minha geração e para as duas ou três gerações de chinelos que me precederam: era uma sala de estar que nos recebia madrugada adentro. (Percebam que uma definição de lar não seria muito diferente.) Uma casa para onde se ia não só na esperança de terminar a noite "indo pra casa" de alguém, injetar rock e Super-8 no pescoço, mas para simplesmente estar. Era barato, era imprevisível e nos fazia sentir, mesmo nas noites mais fracassadas, que a vida estava acontecendo e que valia a pena. (...)
DANIEL GALERA, escritor, no prefácio de "A Fantástica Fábrica"
TOP 10
(momentos e personagens do Velho Garagem, por Leo Felipe):
- Melhor ano do Garagem: 1997
- Melhor festa: Full Moon Party
- Melhor noite: Não sei (mas a pior foi a Noite das Garrafadas*)
- Melhor show: Júpiter Maçã Trio (1995)
- Frequentador mais marcante: Drégus de Oliveira, ex-DJ da casa
- A musa do Garagem: Joy CG, ou a artista plástica Joice Giacomoni
- O muso: O animador Otto Guerra
- Um casal: Formado no Garagem? O cineasta Fabiano de Souza e a curadora de arte Gabriela Motta
- Uma música que represente o Velho Garagem: Loser, do Beck
- Em uma palavra, o Garagem é a "fantástica fábrica" de quê: Loucos!
* O capítulo 22 do livro é dedicado a esta noite, provavelmente de 1999, que o autor define como "chave" para a decisão de vender o bar. A rua, à época, ficava tomada de clientes de bares como os vizinhos Líder e Bambu's. Ambulantes vendiam long necks, que foram usadas na briga generalizada que tomou a Barros Cassal. O Garagem, que sediava um show de reggae, foi atingido por garrafas. Lá dentro ainda houve uma série de furtos, no que pareceu ser um arrastão.
A Fantástica Fábrica
De Leo Felipe
Memórias, Pubblicato/Fumproarte, 276 páginas, R$ 40.
Lançamento nesta terça-feira, às 18h, no Ocidente (João Teles, 960), em Porto Alegre.
O evento integra a programação da 7ª FestiPoa Literária.