O cinquentenário do golpe de 1964 está proporcionando ampla variedade de leituras, em revisão do que aconteceu. Algumas interpretações parecem estar se consolidando, para bem além da lamentação. Um exemplo simples: saiu do mundo universitário para o jornal a síntese nova, quase manchete, "Ditadura civil-militar". Não é pouca a diferença da simplificação anterior, "Ditadura militar", até há pouco unanimemente utilizada.
Um livro como o de Flávio Tavares, 1964 - O Golpe (L&PM), por exemplo, esclarece de modo avassalador a participação do governo norte-americano na desestabilização do governo de Jango, em sua derrubada e na instalação da ditadura. Escrito com a verve do jornalismo investigativo mas com a mão de testemunha dos fatos, o livro é uma viagem que não pode deixar de impressionar a quem cresceu ouvindo as autoridades daquele regime negando alvarmente a força do Grande Irmão do Norte nos eventos brasileiros.
De outra parte, vem à tona uma questão menor para a política imediata, mas interessante para a análise do historiador: até quando se estendeu o Golpe Militar? Pelo que tenho visto, há três datas na mesa de debate: uma é 1985, quando da ascensão de Sarney à Presidência.
(Sarney na Presidência... Uma das piadas de mau gosto que a história de vez em quando prepara. Ele era alta figura da ARENA, a Aliança Renovadora Nacional, o partido de sustentação direta do regime, portanto um homem de estrita confiança dos militares no poder; no caldo da arregimentação da chapa de Tancredo para a eleição indireta, em sucessão à derrota da campanha das Diretas Já, aparece seu nome como candidato a vice do mineiro; e o mineiro Tancredo morre nas vésperas de assumir o cargo. Sarney na Presidência, saindo dos 21 anos de escuridão política, é parecido com o que ocorreu nas vésperas da abolição da escravatura: em vários lugares, incluindo Pelotas e Porto Alegre, senhores de escravos que haviam sugado a energia de centenas, de milhares de escravos, se transformaram em presidentes de comitês pela abolição, na cara dura, sem ruborizar as faces.)
Mas há quem renegue 85 para a condição de marco final do regime, preferindo 1989 - o ano da primeira eleição direta para presidente depois da ditadura. Marco formalmente interessante, porque assinala o fato central da eleição. O Brasil foi às urnas, escolhendo, no segundo turno, entre Lula e... Collor. Ganhou Collor, que um ano e meio depois era apeado do poder, de forma patética.
O historiador Daniel Aarão Reis apresentou nova proposta para esse marco cronológico final da ditadura - 1979. Foi aí que se deu a Anistia, que permitiu o retorno dos exilados ao país, 15 anos depois do Golpe. Reis reconhece que não se restabelecia a vigência democrática plena nesse ano, mas apresenta a tese de que aí começa uma longa transição.
Transição que, do ponto de vista formal, ocorreu mesmo, permitindo-nos agora estar aqui, falando abertamente disso tudo e acompanhando com atenção os trabalhos das Comissões da Verdade, que com escassos meios estão tentando recompor o passado nos fatos para podermos avançar como nação. O leitor naturalmente sabe, mas não custa enfatizar: nos demais países sul-americanos, os executores de tortura, militares ou policiais, foram devidamente identificados e processados, logo depois de acabar o regime de exceção. Aqui, permanecemos nós sem fazer essa crítica e portanto sem avançar como sociedade. Todo o apoio a essas comissões ainda é pouco.
(Para o meu eventual leitor que franziu o olho ao ler o parágrafo anterior, faço questão de expor meu singelo argumento: tortura é crime bárbaro, ponto. Nem na ditadura, nem na democracia, nem mesmo na guerra é admissível torturar um ser humano. É imperdoável que a tortura tenha sido praticada durante a ditadura recente por agentes do Estado brasileiro, ainda mais no exercício de suas funções. O fato de que alguns dos presos fossem truculentos e eventualmente partidários da instalação de outra ditadura não modifica em nada esse argumento: quem está no poder de Estado têm que cumprir as exigências da civilização.)
Nosso cinismo ao deixar impunes os crimes de Estado na ditadura civil-militar, devemos reconhecer, não é nada novo. Foi exatamente assim, guardadas as proporções, que ocorreu na abolição: também naquela conjuntura, o Brasil, por suas instituições, se fez de desentendido e deixou de reconhecer o horror de que foi conivente. Restou uma dívida social que mal agora começa a ser resgatada. Esses cadáveres escondidos embaixo da cama não cansarão nunca de nos solicitar, puxar nosso metafórico pé, em busca da necessária purgação.
NACIONAL-ESTATISMO
Como dizia antes, muita revisão nova tem ganhado a luz do dia. Num livro de grande interesse, A Ditadura que Mudou a Cara do Brasil - 50 Anos do Golpe de 64 (Zahar), organizado pelo já citado Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Motta, encontramos amplo material de reflexão, sobre teatro, sociedade civil, economia, aparato repressivo, sindicalismo, política externa. E no artigo de Aarão Reis se lê uma ótima tese, com potencial para ecoar por bastante tempo: a tese de que há uma estrutura de longa duração na vida brasileira, que ele chama de "cultura política nacional-estatista".
Dito em poucas linhas, tal cultura seria ao mesmo tempo um conjunto de valores políticos, uma visão de mundo, uma psicologia coletiva e um modo de sentir e pensar. Existindo em muitas partes da América Latina (na atual Argentina se vê claramente), tal cultura teria nascido com Getúlio, no Brasil, e se mantido ativa com JK, com os militares e mesmo com Lula.
Suas marcas: um forte prestígio a um Estado centralizador e regulamentador, com aspectos antiliberais (Décio Freitas gostava de dizer que o RS era iliberal, no sentido político do adjetivo); uma diretriz de centralização e integração nacional, tanto do território quanto da sociedade, portanto anti-regional; amplas alianças sociais; políticas de modernização e industrialização; e diretrizes de afirmação nacional no plano estrangeiro.
Feitas essas anotações, Aarão Reis passeia rapidamente pelos momentos sucessivos, a partir de 1930 até agora, mostrando que, com variações (em política uma alteração que vai de ditadura fechada a democracia formal ativa, o que não é pouca coisa) e adaptações (maior ou menor presença de capital estrangeiro, por exemplo), Getúlio, JK, os militares e Lula andaram pela mesma trilha geral.
A CULTURA
A tese da longa duração do nacional-estatismo é fascinante para pensar na história cultural do país. De minha parte, fui na seguinte direção: aquelas características elencadas como marcas da dita cultura política por certo se fizeram em ambientes culturais e em conjunturas artísticas que a reforçavam ou a contrastavam, mas de todo modo girando no mesmo eixo.
Por exemplo: no tempo de Getúlio, o lado reformista do sentimento de nação se viu reforçado pelo romance crítico, o chamado Romance de 30 (Jorge Amado, Lins do Rego, Graciliano, Erico, Cyro Martins etc.), que fez todo um levantamento das condições de vida das regiões brasileiras, com atenção especial aos de baixo. Já o lado ufanista do mesmo sentimento se potencializou com o samba carioca, convertido em gênero nacional por força do rádio (Ary Barroso, por exemplo).
Na ditadura civil-militar, que coisa paralela aconteceu? O lado crítico, reformista ou, digamos, niilista, se expressou na canção também (MPB e Tropicalismo, respectivamente), e assim também ocorreu com a literatura, que perdia força junto às elites mas chegou a causar estrago no conservadorismo. O lado ufanista também teve canção em seu favor, mas quem mais atuou aqui foi a televisão, as telenovelas, amplamente conformistas em sua ideologia.