Gaudêncio Fidelis*
*Doutor em História da Arte pela State University of New York (SUNY), diretor do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs)
O artigo de Jorge Barcellos, A Democracia Local e a Arte Pública (ZH de 05/04), continua sua teoria conspiratória para argumentar em favor de sua convicção de que o artista deva ser cerceado de sua liberdade de expressão. A base desse argumento é de que existem duas grandes categorias que dividem a arte: as "belas artes" e a "arte contemporânea de mercado". Quanto à primeira sabemos a que se refere; a segunda não sei do que se trata, mas suponho que tenha confundido arte contemporânea com venda de obras, desconhecendo que uma enorme parcela da produção atual sequer é comercializada. Sendo assim, conclui o autor: tratar-se-ía de uma disputa ideológica.
O problema de tal confusão epistemológica é que ela implica definir a discussão como estando localizada em dois polos de inclinação estética da arte (as chamadas belas artes), recuando até o século 18 (mas ignorando tudo no meio), até chegar ao contemporâneo, cujo avanço precisa ser impedido. Imagine o leitor se fizéssemos o mesmo com a democracia, a ciência e a tecnologia. Estaríamos vivendo sob o absolutismo monárquico, fazendo cirurgias sem anestesia, atravessando o oceano de navio e ainda achando que o sol gira em torno da terra. Pior: esquece o historiador que os avanços da arte quase sempre se adiantaram a essas três áreas do desenvolvimento humano. É chocante que alguém queira agora colocar limitações na criação artística.
A arte nunca foi um território de consenso, assim como a política. Mas volta e meia aparece um e outro apontando para falsas premissas que supõem que todos deveriam pensar da mesma maneira quando se trata de arte. Para tanto, sugerem comissões, comitês, grupos de avaliação, regulamentos, leis. Ignoram que arte é campo da contradição, dos avanços da criatividade, da experimentação estética. E a arte pública transforma-se sempre na malhação do judas, em parte porque a própria denominação da categoria "pública" confunde os desavisados que não sabem que esta assim se chama, por ser exibida em espaço público. Deveria se chamar na verdade "arte em espaço público".
É recorrente que teóricos despreparados pressuponham que arte pública é uma categoria absorvente de toda a crítica. Esquecem de que se trata de um bem que pertence à coletividade, pois em essência todo o artista produz para dar a sua obra visibilidade, mesmo que ela venha ocasionalmente a integrar uma coleção privada. Não deixa de ser irônico que um projeto de lei proponha a destruição de um possível conjunto de obras em um já destruído espaço público, onde quase nenhuma obra de arte sobreviveu ao vandalismo e à negligência. Pior ainda é um teórico da área da cultura se prestar a defender tal proposição.
Jorge Barcellos*
*Historiador, doutor em Educação pela UFRGS e Chefe da Seção de Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre
Para começar, voltemos às origens do debate, a obra Supercuia, de Saint-Clair Cemin. Com fama milimetricamente construída por Collins & Milazzo, seus curadores, o artista tem o grosso de sua produção vindo de seu ateliê em Pequim. "Não é só o preço, é o tempo. Uma obra grande, que nos EUA demoraria seis meses para ficar pronta, eles fazem em um mês e meio". Esta frase de Cemin poderia ter sido dita por qualquer outro megaempresário de sucesso. Quer dizer, enquanto o artista posa para fotógrafos em Nova York com réplicas da supercuia porto-alegrense que o enobrece, explora mão de obra na China. Isso é certo?
Disponibilizei em meu blog (filosofiafrancesacontemporanea.blogspot.com.br) diversos textos sobre crítica da arte contemporânea. Um deles trata do debate sobre arte pública na França. Em 1998, o país debateu se o Jardim das Tuileries deveria ter esculturas produzidas por artistas do século 20. Área pública de grande valor histórico para os franceses, adorada por Napoleão, ali ninguém mexe em nada sem um grande debate público, e este levou 18 meses. Uns defendendo a transformação do espaço com obras públicas, outros defendendo que o lugar dessas obras é um museu. Por que os franceses debatem tanto a arte pública? É que para eles o espaço público é um lugar sagrado.
A preocupação é com o fato de que qualquer objeto novo pode interferir na "harmonia" do lugar. Nessa disputa por espaços, a política fez o seu papel, encaminhando uma solução conciliatória, e as obras foram instaladas em pontos "discretos" do jardim. "Os trabalhos estão lá, mas é preciso procurar. Todos venceram, os grupos a favor e os contra". Para se ter uma idéia, naquele espaço obras de Picasso chegaram a ter sua exposição recusadas, de Rodin foram retiradas e perderam os poderosos da arte, o que na França inclui o ator Jean-Paul Belmondo, que usava sua autoridade de ídolo popular para que obras de seu pai, P. Belmondo, escultor, adornassem o jardim. Definitivamente, para os franceses, obra de arte em espaço público é coisa séria demais para ser deixada somente com os artistas.
Propus ideias simples para contribuir ao debate: que a arte pública é uma das formas da arte contemporânea; que como tal ela é sensível à influência de tendências como a arte extrema, que recuso no espaço público; que artistas estão construindo um sistema de poder, prestígio e dinheiro feroz e coercitivo que nada tem haver com os objetivos nobres da democracia, da arte e da arte pública; propus que a comunidade artística e a sociedade negociassem no parlamento emendas ou um substitutivo ao projeto e apontei que cabe ao legislador definir uma arte pública que recuse a violência e que valorize a harmonia da paisagem da cidade. Mas as "leis do meio artístico" são muito duras para com o cidadão comum e demais pesquisadores, como é o meu caso, daí a critica ao meu pensamento. Cabe aos leitores ouvir os dois lados e tomar sua posição.