Quando o diretor da editorial Sudamericana começou a ler os originais de Cem Anos de Solidão, numa noite chuvosa de abril de 1967, em Buenos Aires, foi tomado de tamanha exaltação que chamou aos gritos pelo telefone o seu conselheiro literário, Tomás Eloy Martínez (que anos depois escreveria o belo romance Santa Evita). "Venha urgente para cá - disse - estou diante de um livro tão extraordinário que não sei se o autor é um gênio ou um sujeito completamente louco."
Ao chegar, Martínez encontrou as folhas do manuscrito jogadas pelo chão e o editor em estado de transe. Fascinados, ambos leram o texto e, no amanhecer do dia seguinte, decidiram publicar imediatamente a obra com uma tiragem maior do que a usual, 11 mil exemplares que se esgotariam em algumas poucas semanas. Estava iniciada a impactante trajetória de sucesso de um dos romances definitivos da literatura universal. Gabriel García Márquez expandia os limites da ficção, criando um mundo de personagens delirantes e de cenas prodigiosas, onde mito, fantasia e realidade entrecruzavam-se continuamente, asfixiando o leitor com a multiplicidade de peripécias, a inventiva deslumbrante e a construção de um universo paralelo plenamente persuasivo.
Condenado à morte por críticos e teóricos da época, o romance renascia de forma vigorosa e acessível, levando de roldão o ceticismo dominante quanto ao destino futuro tanto do gênero literário quanto da própria palavra escrita. Cem Anos de Solidão representou a ampliação desmedida do reconhecimento de que algo poderoso abria-se no continente, uma explosão de criatividade ficcional só comparável àquela vivida pela Rússia no século 19. De imediato, notáveis prosadores cujos relatos procediam dos anos 40 e 50 também tornaram-se populares da noite para o dia - a exemplo de Jorge Luis Borges, Juan Carlos Onetti, Augusto Roa Bastos e Juan Rulfo.
Desconhecido, mas arguto, o jovem crítico Luis Harss escrevera em 1966 um brilhante e profético livro-síntese, Los Nuestros, centrado na ideia de que havia uma agitação sem precedentes no âmbito literário na América Latina. Entre os narradores que escolhera para figurar como representativos deste processo inovador aparecia um único brasileiro, João Guimarães Rosa. Estava começando o "boom", termo usado pela primeira vez pelo próprio Harss.
Curiosamente, García Márquez também fora selecionado pelo crítico em função de suas obras inaugurais: La Hojarasca, 1955 (O Enterro do Diabo), romance interessante de um jovem autor de 28 anos, à moda de Faulkner; Ninguém Escreve ao Coronel (1961), obra-prima de estilo sintético e alusivo, uma das grandes novelas do século 20; e Os Funerais de Mamãe Grande, magistral livro de contos de 1962. Todos esses livros traduziam as lembranças (e a imaginação desmesurada) do escritor, como se o mesmo estivesse atrás do tom certo para contar o que tinha vivido e o que tinha inventado a respeito de seu avassalador, alucinante e lírico passado. Estava pronto para compor Cem Anos de Solidão.
O início do romance é esplêndido:
"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de casas de barro e taquara, construída à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las havia que apontá-las com o dedo."
Como anotou um crítico, a narrativa abre colocando o leitor simultaneamente diante da violência das guerras civis colombianas e de uma situação-limite do ser humano. Em seguida, o texto torna verossímil um elemento absurdo, pois ao avesso do que se espera, no instante do fuzilamento o coronel Aureliano não pensa na morte e sim na tarde em que, conduzido pelo pai, conhecera o gelo, banalizando o caráter trágico da cena. Ou seja, mediante a memória, o personagem rompe com o presente e recupera um fato remoto, que ao lado de certas antecipações do futuro, é processo nuclear da composição do texto, fazendo com que passado, presente e futuro mantenham entre si - como bem observou Mario Vargas Llosa - divisórias flutuantes, por vezes imperceptíveis.
Além disso, a sequência imprevista entre a hora do fuzilamento e a recordação do gelo prenuncia outros dois pilares da construção romanesca de García Márquez:
a) O processo da história que se desdobra em outra história, com sua inesgotável proliferação de episódios, centrados em torno dos Buendía, em que avultam crimes, ímpetos guerreiros, ódios e paixões familiares, excentricidades, sexo irrefreável, relações incestuosas, perversas, poéticas, num formidável desfile de personagens arrastados pela espiral do tempo e contaminados pela praga da solidão.
b) As transposições contínuas do tempo da história concreta ao tempo do mito, permitindo que a obra seja lida tanto como a representação de antigas sociedades pré-racionalistas quanto a da sociedade latino-americana do século 20.
Do ponto de vista estético, a dualidade não resolvida entre esses dois processos civilizatórios engendra tensões e, sobretudo, a possibilidade de o narrador romper com todas as amarras do realismo trivial através de uma imaginação criadora transbordante, em que o arbitrário, o hiperbólico, o humor corrosivo e as distorções mais fantasiosas tornam-se convincentes.
Com suas infinitas superposições de sentidos; com sua quase inacreditável coerência interna, levando-se em conta a multiplicidade de ações e a galeria de pelos menos 60 personagens importantes; com seu eixo girando em torno de várias temporalidades em que o mágico e o racional se chocam e se confundem; com suas seis gerações da mesma família sendo amaldiçoadas pela culpa, pela sede de viver e pela abrasadora necessidade de decifrar o absurdo da existência; com seu poder de apresentar o mais convincente simulacro da vida real mediante um estilo luminosamente poético, Cem Anos de Solidão constrói um mundo ficcional rico, complexo e fascinante.
O final do livro é extraordinário. Precedido por ataque de formigas e por vozes que chegam do passado, o mundo anacrônico de Macondo inicia a sua decomposição sob o efeito de um terrível ciclone, enquanto o último dos Buendías, Aureliano Babilônia, começa a decifrar os pergaminhos do cigano Melquíades, onde tudo estava antevisto: o destino da estirpe e da cidade, ambas inexoravelmente conduzidas pela fatalidade à destruição, ao fracasso existencial, cristalizado na irrevogável solidão que acompanha os seres na travessia enganosa do tempo, e à inutilidade das ações humanas diante do abismo do nada.
O texto atribuído a Melquíades é também claramente histórico: ali estão a Colômbia, com suas guerras fratricidas, seus coronéis de uniforme ou de pijama, a companhia bananeira, as chuvas tropicais, o nascimento, o progresso e o declínio de um ciclo econômico e de um tipo de sociedade dominada pela consciência sacral do mundo. Contudo, os pergaminhos ultrapassam o cotidiano, o mito e a história. Aureliano Babilônia descobre na página final que eles desvelam a passagem arrasadora do tempo, o império da morte e da condenação ao esquecimento a que todos os seres são submetidos. A incessante busca pelo significado daquelas palavras enigmáticas chega ao fim. Não há retorno, não há segunda oportunidade sobre a terra. Há apenas a solidão. O último dos Buendías descobre que não escapará à desintegração da cidade que seus antepassados fundaram.
Esses são os segredos enfim revelados pelo texto de Melquíades, o cigano que tudo profetizou. No entanto, tamanho é o poder de sua escrita que podemos vislumbrar Macondo e sua gente se alçando por sobre o pavoroso tufão que varre o mundo, erguendo-se por sobre as contingências do Juízo Final - e sobrevivendo. Eles sobrevivem em nossas mãos, transformados em palavra escrita, superando o tempo, ultrapassando a morte, negando o seu destino, criaturas perenes convertidas em frases, em urdiduras sem fim, em tempo e espaço infinitos, indestrutível matéria literária que desabrocha, consolida-se e salva-se em pergaminhos anacrônicos.
O esplendor da ficção
"Cem Anos de Solidão" representou uma explosão de criatividade no continente
Condenado à morte na época, o romance renascia de forma vigorosa e acessível
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