- Quer beijar o chão?
A pergunta foi feita por Norman Murray, sábio local e guia turístico na comunidade rural de St. Elizabeth, Jamaica.
- Nossos visitantes da Europa, dos Estados Unidos, essa é romaria sagrada para eles. Então, sinta-se à vontade - ele me encorajou.
Confissão: eu quase me ajoelhei. Depois de anos visitando a Jamaica, eu havia finalmente chegado à fazenda Appleton, uma espécie de templo com séculos de idade, cheia de bebidas destiladas e aninhada no suntuoso Vale Nassau.
Eu me recompus e retomei o passeio, passando da fermentação à destilação e titilação da língua - semelhante à degustação - sob o comando erudito de Murray.
Pode chamar de "bebemorar": cruzar três ilhas graças à matéria inebriante - o óleo da era colonial - que durante séculos lubrificou economias e motivou feitos sangrentos. Esse conjunto de ilhas pode falar em línguas diferentes e dançar ouvindo trilhas sonoras divergentes, mas um líquido estonteante continua sendo seu denominador comum: escuro ou branco, servido puro em botecos de beira de estrada ou guarnecido com cerejas e guarda-chuvas em pontos turísticos, o rum une a região histórica, cultural e inebriantemente.
E ele também está ganhando espaço. A exemplo da vodca há uma década, o rum desfruta de uma ressurgência com marcas emergindo de Connecticut a St. Croix, nas Ilhas Virgens Americanas, chegando à Austrália e Trinidad e Tobago. Esqueça comida e vinho; os festivais de comida e rum são a coisa certa, em destinos como Barbados, Granada, Berlim e Roma.
Eu comecei minha missão onde muitas missões nasceram: Goldeneye. Na costa norte jamaicana, o antigo lar do criador de James Bond, Ian Fleming, agora é um resort de propriedade de Chris Blackwell, o fundador da gravadora Island Records, o homem que apresentou o mundo a Bob Marley. Hoje em dia, Blackwell promove outro produto básico da Jamaica, que me saudou enquanto eu entrava no elegante chalé à beira-mar: Blackwell Rum.
- Eu bebo puro e, às vezes, sobre uma bela salada de frutas - disse Blackwell durante entrevista telefônica, acrescentando que o rum é o primeiro empreendimento no qual coloca seu nome. Durante o dia, eu o bebi com melancia e gengibre; à noite, ele marinou minha lagosta e o arroz ao leite de coco.
Depois do terreno acidentado da Jamaica, a planura de Barbados impressionava. Tal topografia é ideal para cultivar cana-de-açúcar. Barbados é uma das únicas ilhas da região de calcário de coral, o que conferiria um sabor inimitável à água utilizada na produção de rum.
Cheguei a tempo do Festival Anual de Comida, Vinho e Rum, em novembro, com banquetes suntuosos, degustações de rum e aulas com chefs como Marcus Samuelsson, Ming Tsai - e Paul Yellin, conhecido como Rhum Chef. Criado em Barbados e autor de um livro sobre culinária e destilados, Yellin aceitou me apresentar ao rum da ilha.
Passeei pelo interior povoado por pequenas casas móveis, bancos de degustação de bares de uma ponta à outra da ilha. Meus botecos levavam nomes como De Nest Bar and Hide Away, Survival Bar e Marshall's. No lado do Atlântico eu me deleitei no Bathsheba. Lá, eu bebi Mount Gay e água de coco. Antes que eu me desse conta, estava dançando ao ritmo da soca em uma loja de rum ao lado da barbearia, à esquerda da rotatória; depois dancei enquanto devorava algo celestialmente chamado "seacat em conserva", que na verdade é ceviche de polvo.
Justo quando pensei que sabia beber rum, descobri o rhum. É a vez da Martinica, elegante ilha francesa, lar de canaviais e bananais, um vulcão visitável, praias de areia preta - e um legado nacionalista e revisional do rum.
Aprendi esse fato durante um passeio por La Favorite, nos arredores da capital da ilha, Fort-de-France. Existem 11 destilarias na ilha, sete ainda produzem rum. La Favorite, uma das duas de propriedade familiar, exibe uma máquina a vapor de 1905, que ainda alimenta o negócio inteiro. Uma característica definitiva de todas as destilarias martinicanas está bem ao lado: a coluna de destilação, com a parte superior de cobre, como determinam as regras. Regras? Na verdade, do governo francês, que concedeu ao rum da Martinica o Appellation d'Origine Contrôlée (AOC, denominação de origem controlada), título dado a produtos agrícolas como conhaque e queijo.
O rhum agrícola, a exemplo da cachaça brasileira, não é feita de melado, mas do próprio caldo da cana, o qual, segundo os franceses, é mais fiel ao sabor do açúcar.
No fim das contas, é uma questão de gosto. Célebre pelo nível alcoólico, cor, idade e, como o vinho, pelo "terroir", o rhum agrícola tem mais sabor da terra do que meu amado Appleton. Os brancos tinham um sabor doce, florado; os muito envelhecidos, de safras únicas, evocavam bordo e café.
Porém, na Martinica o gosto do rum vai muito além; a destilaria era tudo. Uma viagem para provar o rum na Martinica equivale às excursões para conhecer vinho no Vale do Napa.