O que têm em comum discos como Araçá Azul, de Caetano Veloso; Calabar ­- O Elogio da Traição, de Chico Buarque; Índia, de Gal Costa; Milagre dos Peixes, de Milton Nascimento; Krig-ha, Bandolo!, de Raul Seixas; Nervos de Aço, de Paulinho da Viola, Matita Perê, de Tom Jobim; o álbum branco de João Gilberto; os LPs de estreia de João Bosco, Gonzaguinha, Luiz Melodia, Fagner, Sérgio Sampaio, Secos & Molhados? Todos foram lançados em 1973. Pensando nas dezenas de gravações importantes daquele ano, e nos tantos livros que vêm dissecando a história e a cultura brasileiras a partir de anos-chave (1808, 1822, 1889, 1954, 1964, 1968), o jornalista carioca Célio Albuquerque propôs ao editor e pesquisador fonográfico Marcelo Fróes um livro que mergulhasse na excepcional produção musical brasileira de 1973.
O resultado é 1973 - O Ano que Reinventou a MPB, com o subtítulo A História Por Trás dos Discos que Transformaram a Nossa Cultura. Em 431 páginas, 48 especialistas (músicos, jornalistas, pesquisadores, historiadores) dissecam 48 álbuns, enquanto dois ensaios mais longos tratam da contextualização. Num dos textos de abertura, Albuquerque, coordenador do livro, cita outros tantos bolachões de vinil que, a seu ver, não se encaixariam exatamente na ideia central do livro - caso, por exemplo, de Lupicínio Rodrigues, que começava a ser redescoberto e que em 1973 lançou o segundo LP, Dor de Cotovelo. "A seleção (assim como as de futebol) será questionada, com certeza", escreve. "Porém, como diz Tárik de Souza, se mesmo a lista mais famosa do ocidente (os 10 mandamentos) é questionada, por que essa não seria?"
A ideia que move o livro, destaca a contracapa, é que em 1973 a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália já não eram novidade. Com o fim da Era dos Festivais (denominação do jornalista Zuza Homem de Mello, autor de obra homônima), "havia a sensação de que a música brasileira cairia em um abismo". Entretanto, "nesse exato momento a música brasileira une tudo isso com outros ingredientes e se revela mais viva do que nunca, 1973 reverte as expectativas e reinventa a MPB" - em discos que, também lembra a contracapa, tinham lado A e lado B. No mesmo momento, a ditadura civil-militar estava a pleno vapor, com a campanha "Brasil: ame-o ou deixe-o" nas ruas, e a propaganda do "milagre econômico" nas TVs. E a censura seguia implacável na música, no cinema, no teatro, na imprensa independente.
A música Comportamento Geral, primeiro sucesso de Gonzaguinha, estava proibida de tocar no rádio. O disco Calabar - O Elogio da Traição, de Chico, tivera a capa e o título proibidos, voltando às lojas com capa branca e o título Chico Canta. Milagre dos Peixes, de Milton, saía com versões instrumentais de três canções que tiveram as letras vetadas. "Vou gravar de qualquer jeito, vou botar na voz tudo o que eles tiraram na letra", disse o compositor, como lembra Luiz Maciel no texto sobre esse álbum clássico. Mais radical, o "hermético" Araçá Azul revelou-se com o tempo um dos trabalhos essenciais de Caetano, registrando o primeiro impacto com o Brasil pós-exílio. Comentei esse disco em Zero Hora antes de viajar em março de 73 para a Europa, onde permaneceria até dezembro em périplo hippie.
Devido à viagem, não assisti à explosão dos Secos & Molhados, primeira banda brasileira a lotar o Gigantinho. Com o tempo trouxe para minha discoteca a maioria dos discos selecionados no livro e agora eles me soam ainda mais históricos. O texto sobre o Secos & Molhados é o único escrito por um jornalista gaúcho, Emílio Pacheco, cara que sabe tudo de música e tem uma memória espantosa. Como não há espaço para mencionar os outros autores, a maioria nomes conhecidos da imprensa, fecho citando mais artistas/grupos cujos discos são comentados: Beth Carvalho, Beto Guedes, Edu Lobo, Elis Regina, Eumir Deodato, Hermeto Pascoal, João Donato, Marcos Valle, Maria Bethânia, Naná Vasconcellos, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Novos Baianos, Taiguara, O Terço, Tim Maia, Tom Zé, Walter Franco, Zé Rodrix...
Antena - Música para ver, ouvir e dar passagem
Roda Gigante, do Nicola Spolidoro Quarteto
Este álbum de estreia na carreira solo do refinado guitarrista porto-alegrense é, com justiça, um dos indicados ao Prêmio Açorianos 2013/2014 na categoria instrumental. Resume uma afirmação de 15 anos de atividade tocando vários gêneros, do blues, ao pop, à MPB, com destaque, por fim, junto à banda Marcelo Fruet & Os Cozinheiros. Em Roda Gigante, ao lado dos ótimos Matheus Kleber (piano, acordeão), Carlos Delia (baixo) e Rafa Marques (bateria), Nicola extrai de sua clássica guitarra semiacústica Epiphone 175 uma bem urdida combinação de música brasileira e jazz, com sutil ar gaúcho. Som elegante, limpo, bom tanto para ouvir como para envolver o ambiente, mesmo nos improvisos. São apenas seis temas, todos dele, que vão de pouco mais de cinco minutos (o samba Misturando) até quase 10 (a jazzística Um Novo Horizonte). As principais influências de Nicola são Toninho Horta, George Benson e Kurt Rosenwinkel.
Independente. Contato: nicolaspolidoro@yahoo.com.br.
Stratoman, de Sergio Diab
Guitarrista de Toni Platão há mais de 10 anos, neste primeiro trabalho solo o carioca Diab traz uma música muito diferente da que faz com a banda. Na tradição de lendas como Les Paul e Chet Atkins, "que demonstraram que solos de guitarra não foram feitos para aborrecer ninguém", ele fez um disco instrumental, como diz, fácil de ouvir. O que não significa simplório, ou muito menos apressado. Tocando ainda violão, ukulele e dobro, ao lado de Wlad Pinto no baixo, Bruno Wanderley na bateria, e participações de Sacha Amback (teclados) e Marcos Suzano (percussões), seu som conquista o ouvido desde a primeira faixa, a "havaiana" Aloha. Já Anna é um samba, Cuba Libre uma salsa, El Matrero um daqueles countries estradeiros. Só duas (das dez) músicas não são dele: os boleros Besame Mucho (Consuelo Velásquez) e Sentimental (Evaldo Gouveia/Jair Amorim). Um tempero pop-jazzy está em tudo. Quando chega ao fim, você dá play de novo. Independente. Contato: sergiodiab@terra.com.br.
Casa do Chapéu, de Cacai Nunes
Discípulo do grande Roberto Corrêa nas artes da viola, o pernambucano-brasiliense Cacai é uma afirmação entre os tocadores do ancestral (e cada vez mais atual) instrumento de 10 cordas. Depois de tocar guitarra em bandas de rock, foi envolvido pela viola e pelo candomblé. Para completar, vive numa chácara nos arredores de Brasília. Sua música é a soma disso. Como pontua o texto de divulgação, este segundo disco "é caipira e cosmopolita, com sabor de tradição e cheio de futuro". Raro encontrar tanta diversidade no trabalho de um violeiro. Tem frevo em Cabaceiras, xaxado em Forró sem Aperreio, catira em Tá com Pressa, Boiada?, além de toques de candomblé (Sopro), a erudita Perobeira-Maria, do mestre Roberto, e até a beatle Eleanor Rigby. Ao lado dele, entre outros, Àlagbé Elton (atabaques), Vavá Afiouni (baixo acústico) e Marcos Farias (acordeão). Gravações feitas ao vivo no estúdio Casa do Chapéu, instalado na chácara. Independente. Contato: www.cacainunes.com.