Em entrevista concedida por telefone, o ator, músico e escritor Rodrigo Alzuguir fala sobre tópicos relevantes da carreira e da vida do sambista Wilson Baptista:
Avós abolicionistas
"Wilson Baptista era de Campos, no norte do Rio, de família humilde mas original, porque os avós eram ligados aos movimentos abolicionistas na região, que foi um dos núcleos mais fortes do país. Chega ao Rio fugido em trem cargueiro, era adolescente e a data estimada é 1927. Tinha o sonho de se tornar sapateador no teatro de revistas. Enturmou-se na praça Tiradentes, onde havia teatros com musicais e ali conseguiu colocar algumas de suas obras em espetáculos. Por muito tempo tentou uma oportunidade. Ao mesmo tempo, apaixonou-se pela Lapa dos malandros históricos. Havia um fascínio à época, e o Wilson se tornou um deles, criou amizade com um barra-pesada do tráfico e tal. Mas a lei da vadiagem pegava. Quem fosse encontrado na rua e não comprovasse ocupação poderia ser preso, até que um parente levasse comprovante de residência. Não só o Wilson, muitos sambistas da época foram presos para averiguações. Uma madrasta do Wilson, a Irene, segunda mulher do pai dele, ia direto à cadeia levar recibo de aluguel, dizia que ele era compositor, era uma batalha cotidiana."
Mulher liberada
"O Wilson deve ter sido o precursor do tema da liberação da mulher na música brasileira. Mulher não se separava, mas suas personagens se separavam. No auge do machismo dos anos 1940, ele fez um samba chamado Lealdade, recentemente gravado pelo Caetano Veloso. Tem um cara falando para a mulher: "Serei, serei leal contigo / quando cansar dos teus beijos / te digo", o que parece letra machista, aí em seguida ele canta: "Mas tu também liberdade terás / pra quando quiseres bater a porta sem olhar pra trás". É uma letra muito à frente do seu tempo, um samba moderno. Essa é a mentalidade dele. Ele tem uma série de sambas feito para a mulher cantar, em primeira pessoa, que a Aracy (de Almeida) e a Odete Amaral gravaram, elas que eram libertárias para a época. As letras diziam que, se o marido fosse embora não tinha problema, porque ela arranjava outra pessoa. Tem um outro samba em que um cara faz uma proposta e a personagem diz não, que prefere o Salgueiro. O Wilson era muito livre de cabeça, ele não seguia os preconceitos da época. No samba Chinelo Velho, a mulher não está nem aí se o cara vai embora. Isso é único em sua época. Em Boca de Siri, a personagem narra a farra dela no carnaval, e pede que não contem ao marido. São meio Leila Diniz. Há casos, como Emília, em que ele dá tratamento machista, sim, aí há uma dualidade."
Desenhista de personagens
"Em termos de composição, Wilson vem da geração do Geraldo Pereira, que trouxe a síncope ao samba mais de bossa, sem aquela preocupação com a métrica, com a rima, algo mais livre. Seus sambas são os tocados em gafieira, facilitam o quebrado.
Quando comecei a mexer na obra do Wilson logo me impressionei como ele criava os seus personagens e levava isso às últimas consequências. Já no primeiro verso de Oh, seu Oscar aparecem três personagens: o seu Oscar chegando em casa, a vizinha que traz o bilhete da esposa, e a esposa. Tudo é muito teatral, e usei isso ao criar o musical em sua homenagem. A Etelvina é outra, de vários sambas teatrais. Ele usava personagens várias vezes, mudava o nome, mas mantinha o tipo. Alguns sambas são quase minioperetas. O Chico Brito, a Nega Luzia..."
Mais sambas que Ary Barroso
"Ele produzia muitos sambas, era muito fértil. Da geração dele, só Haroldo Lobo ("Tristeza, por favor, vá embora / minh'alma que chora / está vendo o meu fim") chega perto. Wilson fez 720 músicas e teve sucesso maior nos anos 1940 e 1950, vencia concursos de carnaval e figurava em jornais e revistas. É claro que o Wilson vendeu muita música (ele chamava os seus parceiros de ocasião de 'comprositores'). Mesmo sem incluir as vendidas, levando em conta só as gravadas, são mais de 400 músicas, é muito expressivo. O Ary Barroso, que tem lançamento agora de uma caixa com toda a sua discografia, chega a 200 e poucas. Você vê, Wilson tem quase o dobro do Ary, que é dos mais férteis. Isso por si só não é vantagem, podia ser uma obra extensa e sem qualidade. Não é o caso do Wilson. Quando produzi o livro Cancioneiro de Wilson Baptista, foi um suplício me limitar a 105 músicas, o que já é bastante. Ficaram fora umas 40 composições maravilhosas.
O curioso é que sua geração criou as primeiras sociedades dos músicos, que cuida dos seus direitos; ele, inclusive. Mas era paradoxal, ele dizia que o estômago é o pior inimigo do compositor. Não tinha tempo de esperar que a música tocasse, gerasse um direito e só então recebesse. Ele vivia daquilo. Então, no desespero, vendia. Fazia a composição no bar e, se alguém tivesse o dinheiro, na hora ele repassava. A vida inteira foi assim."
Sucesso no Estado Novo
"Wilson teve alguns sucessos nos anos 1930, no período da polêmica com Noel, mas bombou mesmo a partir de 1940, quando venceu o primeiro concurso de música popular promovido pelo Estado Novo, pelo DIP mesmo. Ele venceu com Oh! Seu Oscar, parceria com Ataulfo Alves, os dois cantaram na final no estádio do América F.C., na Tijuca. Os cantores se inscreviam no DIP e ensaiavam lá mesmo, no estúdio da seção de rádio. Foi uma apresentação estelar, estavam lá Francisco Alves, Aracy de Almeida, Orlando Silva, Sylvio Caldas, Lucinha Batista - e o Cyro Monteiro, que tinha gravado Oh! seu Oscar, estava viajando. Eram 15 contos de réis de prêmio, uma dinheirama. Isso abriu a porteira para o Wilson, embora não aparecesse muito no rádio e na imprensa. Se fosse hoje seria algo avassalador, um meme. Mas foi muito grande a quantidade de gente escrevendo crônicas sobre Oh! Seu Oscar, falando no personagem. Até Graciano Ramos escreveu no jornal, a intelectualidade toda, pró e contra, mas falavam. Virou uma febre na imprensa, inventaram piadas, foi um sucesso. No ano seguinte do concurso teve o Bonde de São Januário, também parceria de Ataulfo com Wilson e cantado pelo Cyro, outro grande sucesso. Aproveitaram aquela coisa do discurso do Getúlio Vargas no Estado Novo e fizeram o elogio ao trabalho: quem trabalha é quem tem razão, propaganda da ideologia vigente. Não era samba encomendado. Como fez muito sucesso o primeiro ano do concurso e o prêmio foi grande, no ano seguinte criou-se uma expectativa e o pessoal do Café Nice, a turma do Wilson, os compositores urbanos, Ataulfo Alves, Roberto Martins, Lamartine Babo, Haroldo Lobo, Assis Valente, inscreveram sambas. Grandes compositores da época fizeram samba falando do trabalho de olho no rico dinheiro. E concorriam com três ou quatro músicas, faziam parcerias diversas e, na verdade, eram todos amigos e concorrentes. Com o tempo, a repressão caiu sobre as casas de jogos, os bordeis, e a Lapa entrou em decadência. Acho que se não tivesse a censura do DIP, o Wilson teria ido muito além."
Wilson perdeu o bonde do resgate
"Alguns compositores do passado chegaram até nós também porque tiveram a sorte de contar com quem cuidasse da memória. O Wilson não teve isso. Morreu esquecido em 1968, a obra dele estava bastante abandonada, e tem muita gente que associa Wilson apenas à polêmica com Noel Rosa. Ele perdeu o bonde do resgate. Hoje todos sabem quem é Cartola, Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, porque foram resgatados. Cartola só gravou As Rosas não Falam e O Mundo é um Moinho nos anos 1970. Se tivesse morrido ali pelos anos 1960, talvez corresse o risco de não ser resgatado. Wilson, se tivesse vivido mais 10 anos (morreu com 55 anos), com certeza teria gravado discos, feito shows e seria um nome mais presente. No fim, entendendo tudo isso, tornou-se amargo, revoltado, foi ficando para trás, não era mais gravado e passou a ter problemas de saúde. Tinha o coração aumentado, cardiomiopatia dilatada, com falta de ar, taquicardia, náuseas. Estava sem grana, preocupado com o aluguel. E aí foi ficando mais recluso e morreu pobre."
Biografia recupera trajetória de Wilson Batista