Neste mês, ando envolvido com uma tarefa honrosa: ajudar na alocação dos livros e dos escritos do falecido Aníbal Damasceno Ferreira num acervo, junto ao Delfos, da PUC. Lado a lado com Rafael Damasceno, sobrinho, Carlos Gerbase e Antônio Carlos Sena, amigos de longa data, e contando com a mão essencial de Heloísa Netto, Karina Lucena e Olívia Barros de Freitas, a partir da vontade da família e da força de Luiz Antônio de Assis Brasil, vivemos dias de intensa visitação à vida do saudoso Aníbal, tantas vezes citado aqui nesta coluna.
Visitar sua vida quer dizer entrar em contato direto com sua ação. Professor de cinema na PUC por muitos anos, militante do mundo cinematográfico do estado, funcionário da UFRGS por décadas (esteve entre os que fizeram acontecer o auge da Rádio da Universidade), acima de tudo um leitor muito atento e original, Aníbal tem ainda vários outros créditos, que o tempo vai consolidar. Pessoalmente, devo a ele o ponto de partida e uma forte presença intelectual em meu doutorado, que versou sobre a crônica de Nelson Rodrigues, que ele foi o primeiro a considerar um verdadeiro ensaísta, na linha de Montaigne.
A parte mais visível de sua ação cultural está relacionada à redescoberta de Qorpo-Santo, o peculiar dramaturgo porto-alegrense do século 19. Sua militância em favor da divulgação dessa figura não tem igual: desde 1956, pelo menos, Aníbal se incumbiu de falar sobre ele, mostrar seus textos, incentivar montagens, solicitar pareceres, sendo acompanhado por uns poucos amigos de fé (Sena e Flávio Oliveira entre eles). Em certo momento, seus méritos foram diminuídos por Guilhermino César, que preparou uma edição anotada do teatro de Qorpo-Santo. Poucos saíram em defesa do papel do Aníbal; o principal foi Janer Cristaldo.
O mundo continuou a girar. Qorpo-Santo vive, em grande medida, porque o Aníbal empenhou sua trajetória na defesa de causas inteligentes, sem se preocupar com louros. (Já contei essa história, mas vale a pena repetir: insisti várias vezes para o Aníbal escrever sua versão desse imbróglio todo, expondo sua visão para o leitor do futuro, e ele sempre me respondeu que não era o caso. Eu reiterava que ele deveria ser reconhecido em seus méritos, e ele me respondia com uma citação do padre Manuel Bernardes - era melhor, dizia o Aníbal, que no futuro alguém perguntasse "Por que não ergueram uma estátua para ele?" do que aparecer alguém reclamando "Por que ergueram uma estátua para ele?".
Constituído seu acervo, o futuro vai poder estudar melhor como pensava, como lia, o que anotava o grande Aníbal, cultivador de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Montaigne e autores portugueses antigos, Nelson Rodrigues e os ensaístas ingleses, entre outros.
QORPO ABSURDO
Quando a obra de Qorpo-Santo começou a circular, logo uma manchete se apresentou: ele seria um precursor do teatro do absurdo, tendência em voga naquela quadra histórica. Assim como Ionesco e Beckett, Qorpo-Santo também mostraria o sem-sentido do mundo, em cenas e enredos desoladores e derrisórios. A comparação correu o Brasil e se consolidou. Aníbal disse várias vezes que achava isso uma bobagem, mas como servia para promover o escritor sulino era melhor deixar correr.
Essa história de precursor é sempre esquisita. Se por precursor a gente entender alguém que influenciou a posteridade, no caso Qorpo-Santo influenciando Ionesco, nada feito, pelo singelo motivo de que nem mesmo os porto-alegrenses mais antenados tinham lido o autor, quanto menos alguém fora daqui. Mas isso se agrava quando se trata, como é o caso, de um provinciano, no Rio Grande do Sul, pedaço de um país irrelevante literariamente, o Brasil, sendo posto em linha com um autor de país central no Ocidente, e numa língua de ampla dominação cultural (Ionesco era romeno mas escreveu em francês, Beckett era irlandês e escreveu em inglês e em francês).
OU POR OUTRA
Enquanto manuseava um e outro exemplar da biblioteca do Aníbal, me fiz de novo a pergunta: certo, não se trata de "precursor"; mas é inegável que, ora, Qorpo-Santo escreveu antes de Ionesco e Beckett, e esse é um dado inegável. Não é precursor? Não, não é. Mas veio antes. Antes e esquisito, escrevendo sem ser lido, bolando peças de teatro que apenas cem anos depois ganhariam o palco, mas antes, de todo modo.
Escreveu antes, numa província secundária de país irrelevante? Sim. Era maluco? Talvez. Acertou a forma meio sem querer? Pode ser. Mas o fato é que escreveu antes e escreveu do jeito singular que foi o seu.
Vai daí me lembrei de outras primazias ocorridas no RS literário. Sim, há outras. Cito quatro, nenhuma delas irrelevante.
O Partenon Literário. Em 1868 organizou-se em Porto Alegre uma associação de escritores para cultivar a literatura, publicar revista, ler e ser lido, sob a liderança de Apolinário Porto Alegre. Pois aqueles caras, numa cidade pequena e sem força política nacional, nem pujança intelectual ou científica, organizaram uma academia, mas com olhos postos no futuro, não no passado: trataram de acolher mulheres desde o primeiro momento; assumiram compromissos republicanos, em sentido amplo (ofereceram alfabetização grátis à noite, lutaram contra a escravidão e pela república); formularam o que me parece ser um embrião, depois gorado, de uma universidade.
Não é pouca coisa. Veja-se a comparação com a Academia Brasileira de Letras, fundada trinta anos depois, no Rio, a capital: foi feita imitando a Academia Francesa, com ares monárquicos; só admitiu mulheres cem anos depois de fundada; cultivou a fantasia da imortalidade, só para quarenta eleitos a cada geração; nada fez, décadas a fio, por qualquer causa pública relevante ou dramática.
Não é uma linda primazia a do Partenon? É sim.
MAIS TRÊS
Terceira primazia: Simões Lopes Neto. Tantas fez este homem que é difícil escolher apenas uma. Mas escolhamos: em sua obra, também gorada, que apenas em 2013 veio a público, Terra Gaúcha: Histórias de Infância, de 1904-1908, o genial pelotense inventou uma personagem que antecipou em vinte anos outra genial criação, de Monteiro Lobato: assim como a tia Nastácia, figura da mulher do povo que conta para as crianças a tradição oral, as lendas, Simões Lopes Neto, bem antes, inventou a siá Mariana, que faz o mesmo papel, ainda que de forma menos desenvolta que a personagem de Lobato.
Quarta: é inegável que Machado de Assis se consagrou ainda em vida como um excelente escritor, uma figura realmente superior. Recebeu análises de variadas origens, quase sempre a favor. Mas quem primeiro escreveu uma monografia sobre sua obra, um estudo moderno, no sentido de penetrar em um aspecto particular do conjunto, foi um gaúcho. Foi Alcides Maya, em 1912, que publicou Machado de Assis - Alguns notas sobre o "humour".
Quinta: certo que muitos romancistas no Brasil, desde Alencar, escreveram de modo a ganhar muitos leitores, educando-os com sua literatura ao mesmo tempo em que ecoavam as coisas de vida brasileira. Mas sem nenhum bairrismo devemos admitir que foi Erico Verissimo quem estabeleceu o romance moderno brasileiro. Por sua linguagem grandemente comunicativa para as classes médias, sem espaço para firulas de estilo, por sua capacidade de pôr em discussão os temas vivos do momento, pela rede de distribuição que ele ajudou a Globo a montar, sua literatura mudou o panorama dos anos 30 e 40. E ele não contava com o apelo do exotismo baiano, nem da militância de esquerda ou outro dos motivos de consagração intelectual em sua época.
BAIRRISMO?
Sei que poderá parecer bairrismo isso tudo que acabei de dizer, mas acho que não: é reconhecimento. As coisas andaram assim porque havia aqui uma classe média (que é a classe leitora) relativamente ampla e reconhecida como força ativa na política, e por isso mesmo capaz de dar fôlego a tais primazias. Que não são precursoras do que aconteceu no mundo, mas ocorreram aqui, em seu tempo, antes do tempo carioca e tropical, provavelmente (e mais uma vez) em sincronia com Montevidéu e Buenos Aires.