E o Rio Grande do Sul, o que tem a ver com as biografias não autorizadas? Para começar, os dois compositores gaúchos mais conhecidos nacionalmente ainda não foram biografados: Lupicínio Rodrigues e Teixeirinha. É espantoso que Lupicínio, às vésperas das comemorações pelo centenário de seu nascimento, e sendo a personalidade quase lendária que é, com uma vida recheada de histórias, não tenha motivado alguém a escrever sobre ele. Falo de biografias de peso, como as que Ruy Castro faz. Liguei para seu filho Lupicínio Rodrigues Filho, o Lupinho, e fiz essa pergunta. Respondeu que nunca foi procurado por ninguém com tal propósito. Se isso ocorresse, teriam que conversar, "e eu quereria ler antes da publicação, pois afinal se trata do nome do meu pai". Pessoas que tentam se aproximar mais a fundo da vida de Lupi, para informações menos requentadas, queixam-se de encontrar em Lupinho uma barreira.
É o caso da professora de História Márcia Ramos de Oliveira, que em 2002 defendeu tese de doutorado na UFRGS tendo Lupi como tema. Exceto Lupinho, ela não conseguiu falar com os familiares do compositor porque sempre havia algum impedimento. É óbvio que as editoras não investem em projetos que poderão trazer problemas judiciais. E, estas alturas, um interessado em biografar Lupi enfrentaria adversidades extras: quase todas as fontes primárias ligadas a ele, como seus amigos Johnson, Hamilton Chaves, Demósthenes Gonzalez e Rubens Santos, já morreram. Sua esposa Cerenita e 19 de seus 20 irmãos, também. Então, restam a quem quer saber um pouco mais do gênio da dor-de-cotovelo os pequenos livros Lupicínio Rodrigues (1984), de Mário Goulart, e Roteiro de um Boêmio - Vida e Obra de Lupicínio Rodrigues (1986), do próprio Demosthenes, ambos esgotados.
Já a pesquisa para um livro sobre Teixeirinha, feita pelo jornalista Daniel Feix, está pronta há oito anos. A combinação era de que a família leria os originais. Antes de fazer o texto final, Daniel submeteu aos filhos um copião. Pediram que subtraísse informações importantes e o depoimento de uma irmã dele (!) sobre sua infância. Daniel recusou, a família não cedeu os direitos para publicação e a editora decidiu não correr o risco. Sobre Teixeirinha não há sequer um livro de menor fôlego. Estava programado na coleção Esses Gaúchos (Tchê!/RBS), editada nos anos 1980, mas não foi feito - a coleção lançou pequenas biografias de Gildo de Freitas, Carlinhos Hartlieb, Elis Regina e a de Lupicínio, mencionada acima. Enquanto isso, o jornalista Marcello Campos vai pesquisando Lupi pelas beiradas: publicou em 2011 a biografia do parceiro Alcides Gonçalves e já aprontou a do compadre Johnson.
Sobre a gênese da música brasileira
Duas preciosidades históricas do compositor e musicólogo Bruno Kiefer voltam mais de 30 anos após as edições originais. Os clássicos ensaios A Modinha e o Lundu (1977) e Música e Dança Popular - Sua Influência na Música Erudita (1979) agora estão reunidos em Raízes da Música Popular Brasileira - Da Modinha e Lundu ao Samba (Editora Movimento, 120 páginas). Apoiado em suas pesquisas e nas de historiadores da música como Mozart de Araújo e José Ramos Tinhorão, Kiefer resume e comenta o nascimento de nossa música popular no fim do século 18 com a modinha e o lundu - a primeira tendo como ponto de partida a música europeia e o outro, o batuque dos escravos. A paternidade da "formatação" dos dois gêneros deve-se ao mulato Domingos Caldas Barbosa, poeta, cantor e tocador de viola, ou seja: é o fundador da música popular brasileira. Curiosidade: como militar, ele serviu na Colônia do Sacramento.
Enquanto traça a linha do tempo até chegar ao maxixe e daí ao samba, Kiefer vai situando movimentações e autores (Xisto Bahia, Silva Calado, Chiquinha Gonzaga, Donga...), usando partituras e versos como ilustração. A segunda parte do livro, sobre as danças europeias nacionalizadas no século 19 (quase todas exportadas pela França), é interessante para os leitores do RS, pois a música regional gaúcha fixou ritmos/gêneros como polca, chote, mazurca, valsa e vanera (descendente da habanera afro-cubana-espanhola). A polca e a habanera estão também na gênese do choro carioca, que tem entre seus definidores Ernesto Nazareth, classificado pelo musicólogo como um autor erudito. Bruno Kiefer faria 90 anos em abril. Nascido na Alemanha, chegou a Porto Alegre aos 12 anos. Foi professor da UFRGS, e um dos principais compositores da música erudita brasileira. Morreu em 1987.
Antena - Música para ver, ouvir e dar passagem
> Alto Grande, de Paulo Freire
Ouvir o cantador Paulo Freire é um encantamento só. Caipira erudito paulistano formado em violão clássico, ele aprendeu a tocar viola com Seu Manelim, em Urucuia (MG), para onde foi depois de ler Grande Sertão: Veredas, no fim dos anos 1970. Com o tempo ficou também um mestre - e são raros os que, como ele, sabem mimetizar-se com a alma pura e curiosa do sertanejo. Seus causos cantados, de letras longas e visuais, têm uma boniteza tão simples e tão profunda, que levam o ouvinte do riso ao nó na garganta. É sempre ele na viola e voz, aqui e ali com um baixo e uma percussão. Entre as novas músicas, são antológicas Ferveu, sobre um sujeito perdido de paixão, e É Meu, sobre dois amantes que enfrentam a ira de um "proprietário" da natureza. Bom Dia foi sucesso de Zizi Possi em 1994 e ele a grava pela primeira vez. Fecha o CD uma maravilha de quase nove minutos compartilhada com o brilhante piano de Benjamim Taubkin. (Vai Ouvindo/Tratore; contato: www.paulofreire.com.br)
> Purabossanova, de Sérgio Britto
Neste quarto álbum solo, Britto despe-se de qualquer vestígio do rock e do nervosismo cinza de São Paulo para fazer uma música ensolarada, de extração quase carioca, leve mas consistente - vale lembrar que ele é o único dos Titãs nascido no Rio. A bossa predomina, às vezes com aquele espírito original de tristeza sem causa: uma das canções, com a participação de ninguém menos que Alaíde Costa, diz "eu fui muito feliz, completamente triste". Além de cantar bem, Britto está cercado de convidados de luxo, Rita Lee, Luiz Melodia, Roberta Sá, a argentina Eugenia Brusa. E faz letras ótimas, como as de Maria (LAutre Chienne), na qual perde a cabeça, "como Robespierre", e La Momia Inquieta, sobre Eva Perón. O tom pop-latino é outra marca do CD, com músicas de Charly Garcia e Julieta Venegas. Os produtores e músicos Guilherme Gê e Emerson Villani acertam nos arranjos, levados por instrumentistas do calibre de Dirceu Leite nos sopros e Marcos Suzano na percussão. (Som Livre)
> BailaDO, de Orestes Dornelles
Orestes Dornelles é um compositor gaúcho para se prestar atenção. Quando comentei o primeiro disco, em 2008, fiz uma referência a Chico Buarque pra dar uma ideia, pois é nesse clima que ele se movimenta. O novo está muito melhor, mais bem resolvido nas varáveis da composição entre samba, MPB e folclore gaúcho/latino-americano, com boas letras tecendo crônicas do cotidiano do "universo da província, onde a província é o universo", como diz. Arisco, a primeira faixa, tem ares de chacarera. Em parceria com Mário Falcão, Efêmera vai para os lados do samba-rock, enquanto Tá Correto é samba mais tradicional, mas com estilo porto-alegrense. Bela homenagem a Mercedes Sosa, Quando la Negra Canta tem zamba. A romântica (e dramática) Por Amor fala de uma menina "caída". Minha preferida é Baimaracô, parceria com Ita Arnold unindo Sul e Nordeste. Enxuto e eficaz, o grupo de músicos destaca Lucas Kinoshita e Filipe Narcizo. (Independente; contato: orestesd2@hotmail.com)