A urbana "Desgarrados"
Mário Barbará já tinha um histórico vitorioso na Califórnia da Canção Nativa quando apresentou, em 1981, a música que se tornaria um marco na sua carreira, aquela que ele nunca mais pôde deixar de tocar "sob pena de ser linchado", como brinca: Desgarrados, composição sua com letra de Sergio Napp consagrada como a grande vencedora da Calhandra de Ouro. A letra tinha temática urbana, que chegou a dividir o júri: "Eles se encontram no cais do porto pelas calçadas/ Fazem biscates pelos mercados, pelas esquinas/ Carregam lixo, vendem revistas, juntam baganas/ E são pingentes das avenidas da capital".
:: Show coletivo nesta terça celebra grandes sucessos regionais
- Eu vivia em Porto Alegre naquela época - lembra Barbará, hoje morador de São Borja, onde nasceu.
Nascido em Giruá, o escritor e compositor Sergio Napp fez com Desgarrados sua estreia na seara nativista.
- Sou das Missões, mas nunca tive vivência campeira. Vivo em Porto Alegre desde os 10 anos. Sempre quis participar da Califórnia. Pensei no tema do êxodo rural, mas, como já havia sido tratado no festival, quis fazer algo diferente. Fui a um show do Musical Saracura com participação do Barbará. Gostei da voz dele e fui procurá-lo. Entreguei a ele três letras, entre elas, Desgarrados.
Napp lembra que a canção quase não participou da Califórnia porque Barbará, à época, queria se desvincular do cenário nativista:
- Mas, uma semana antes do fim das inscrições, perguntou qual canção eu queria inscrever. Deu no que deu.
A polêmica de "Morocha"
Morocha não foi a vencedora da 4ª Coxilha de Cruz Alta, mas, se houvesse um título de música mais polêmica, a canção ganharia com folga. Comparando o trato com as mulheres à doma de cavalo, a composição recomenda o uso de "maneador nas patas e pelego na cara" para as companheiras.
- É indescritível a vibração do ginásio durante a apresentação, algumas mulheres se embraveceram, mas a maioria entendeu que era brincadeira - lembra Davi Menezes Jr.
O intérprete diz ter sido escolhido pelos compositores Mauro Ferreira e Roberto Ferreira para defender o tema justamente por ser capaz de dar "a roupagem de humor necessária". No entanto, muita gente levou a sério: as acusações de machismo logo despontaram e, poucos meses depois, o cantor nativista Leonardo lançou a faixa Morocha, Não, que virou o hino dos descontentes com Morocha. Menezes, que saiu do festival de 1984 contemplado como melhor intérprete, não se arrepende da polêmica:
- Pouca gente sabe, mas Leonardo era meu amigo, e o que ele fez foi aproveitar a visibilidade que a música propiciou. A canção alavancou minha carreira, passei a viver da música graças a ela. Se fosse hoje, faria o mesmo e acredito que, com a internet, a repercussão seria ainda maior.
O olhar saudoso de "Esquilador"
Telmo de Lima Freitas caminhava inquieto pelos corredores do acampamento da 9ª Califórnia da Canção Nativa, em Uruguaiana, quando deparou com um peão usando avental de esquilador. Às vésperas da apresentação de seu novo tema por Edson Otto e os Cantores dos Sete Povos, ele descobria ali o visual do grupo. Com bolsas de estopa como aventais e pelegos representando lã, eles venceram o festival no quesito Melhor Indumentária e Melhor Composição.
Além de registrar as tradições do campo como a tosquia das ovelhas, o sucesso de Esquilador também está no olhar saudoso para a vida no Interior, como explica Telmo:
- Era 1979, época de um êxodo rural intenso. Houve muita desilusão, já que as pessoas viviam com pouco no campo, mas encontraram miséria na cidade - explica ele, que também afirma ter feito parte daquele movimento, já que saiu de São Borja para Goiás e, finalmente, Porto Alegre.
Até mesmo o truco gaudério virou metáfora em Esquilador. Telmo conta que, ainda em Uruguaiana, foi questionado a respeito da letra, em que alguém tinha a pontuação "33 de espadas, mas perdeu de mão" _ o que seria impossível segundo as leis do jogo.
- É um personagem jogando com o destino, e nessa partida não é tão fácil compreender as regras - ensina o compositor.
Vaia para "Semeadura"
Vitor Ramil compôs Semeadura aos 17 anos vislumbrando Mercedes Sosa naquelas inflamadas intepretações que marcaram o cancioneiro latino-americano. O rapaz pediu então uma letra para José Fogaça, amigo e parceiro de seus irmãos mais velhos, Kleiton e Kledir. Iniciando sua carreira política pelo então MDB, Fogaça resumiu nos versos o clima de engajamento da época ("Nós vamos prosseguir, companheiro/ Medo não há/ No rumo certo da estrada / Unidos vamos crescer e andar"). A música recebeu o troféu de Projeção Folclórica na 10º Califórnia, em 1980, cercada de polêmica.
- Quando foi anunciado o prêmio, recebemos uma vaia antológica - lembra Vitor. - Éramos uma gurizada não muito a fim de seguir os padrões tradicionalistas, com roupas estilizadas e instrumentos como bandolim, piano, baixo elétrico e percussão.
A recepção do público foi representativa da sempre tensa convivência nos festivais nativistas entre as vertentes campeira e urbana da música regional.
- Éramos um corpo estranho - diz Vitor. - E tinha a questão de ser uma música politicamente engajada em plena ditadura. Dizem que teve briga no júri entre os que queriam nos dar primeiro lugar e os que diziam que não dava para premiar comunistas (risos).
A versão de Semeadura que Vitor apresentou na Califórnia é diferente da que gravou no disco A Paixão de V Segundo ele Próprio (1984) - e que acabou imortalizada por Mercedes Sosa, como Siembra:
- Não era um bom arranjo. E tirei a introdução, que tinha um texto recitado bem no clima revolucionário.
"Canto Alegretense" de fora
Antes da consagração popular, uma polêmica marcou a trajetória da célebre Canto Alegretense - espécie de hino sentimental dos gaúchos interpretado pelos Fagundes.
Uma das primeiras apresentações da composição ocorreu em 1981, durante a 2ª Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria. Naquela época, Bagre, Ernesto e Neto Fagundes ainda faziam seus shows sob o nome de Grupo Inhanduy. O trio subiu ao palco, tocou a música e, como era de se esperar, alcançou grande sucesso entre o público. Uma controvérsia, porém, tirou o conjunto da disputa pelo prêmio do festival. Concorrentes argumentaram que não era uma obra inédita, o que contrariava as regras do evento. Já havia sido tocada, poucos meses antes, na Semana Crioula Internacional de Bagé.
Inconformado, Bagre debateu com os organizadores e foi às rádios da região em busca de apoio popular, mas, por fim, achou melhor não se indispor com os demais compositores e a direção do festival. Acabaram entrando em um acordo.
- Para mim, ter tocado o Canto Alegretense uma vez não tirava seu ineditismo, porque ainda não havia sido gravada. Foi acertado que não concorreríamos ao prêmio, mas gravaríamos a música com finalistas no disco da Tertúlia - recorda Bagre.
Assim, o Canto Alegretense saiu da competição para entrar na história.
As raízes de "Vozes Rurais"
Apresentada em Santa Rosa no primeiro Musicanto, em 1983, a composição de João de Almeida Neto se tornou a declaração de princípios de muitos nativistas. Vozes Rurais conquistou o público ao reafirmar as raízes culturais do campo diante das influências urbanas que despontavam nos festivais.
- Eu não era exatamente contra as mudanças estruturais e melódicas que vinham de fora, mas achava importante manter nossa essência rural - explica João de Almeida.
A canção que propunha que o "autêntico canto gaúcho" se impusesse diante das "estranhas tendências" foi ovacionada pela plateia, mas não levou o prêmio máximo da competição, que ficou para No Sangue da Terra Nada Guarani, composta por Nelson Coelho de Castro. Porca Véia, como é conhecido o gaiteiro Elio da Rosa Xavier, levou prêmio de melhor instrumentista pela interpretação ao lado de João de Almeida Neto.
O compositor acredita que Vozes Rurais segue sendo uma das mais requisitadas de seu repertório por conta de seus versos:
- Esta é a canção que me fez alguém dentro do movimento nativista, o público ouve a letra como um argumento em defesa de nossa tradição.
A simplicidade de "Eu Sou do Sul"
No começo dos anos 1990, Elton Saldanha estava cansado dos tradicionais épicos nativistas que enalteciam as belezas naturais, a história e o modo de vida campeiro. Nada de errado com a temática, mas ele achava que as coisas deveriam ser mais simples, em oposição às canções que careciam de longas explicações antes de serem apresentadas nos festivais. Eu Sou do Sul surgiu justamente quando Saldanha fechou os livros de pesquisa e abriu as janelas.
- Queria oferecer a quem ouvisse a música visões de pequenos cartões-postais do Rio Grande do Sul. Mas sem exagero, tudo muito simples e direto, de maneira que o público se identificasse rapidamente - justifica Saldanha.
Eu Sou do Sul estreou na 22ª Califórnia, em 1992, defendida pelo próprio compositor com direito a saxofone no palco - algo pouco comum para o festival. Não levou o grande prêmio, mas, por ter levantado o público como poucas outras canções, acabou arrebatando o troféu de música mais popular daquela edição. Desde então, a composição não apenas virou parte integrante do repertório de Saldanha como está entre os grandes clássicos da música nativista. Tanto que foi eleita uma das mais emblemáticas canções do regionalismo gaúcho em enquete feita por Zero Hora durante a última Semana Farroupilha.
O real "Romance na Tafona"
Luiz Carlos Borges mal tinha iniciado sua carreira solo, no final dos anos 1970, quando emplacou Tropa de Osso na 9ª edição da Califórnia da Canção Nativa - mesmo sem levar o principal troféu, a canção teve bastante destaque. No ano seguinte, em 1980, subiu ao palco da 10ª Califórnia junto do parceiro Antonio Carlos Machado para defender uma nova música, que versava sobre uma noite de amor entre dois personagens que acabariam emblemáticos do cancioneiro nativista: o casal Maria e Pacácio.
O que pouca gente sabe é que o tórrido encontro de Romance na Tafona é verídico.
- Um dia, o Antonio Carlos me contou que queria fazer uma letra sobre uma mulher que havia sido ama de leite dele, na fazenda onde ele se criou, em Santa Maria. Depois que ele me contou a história, só precisamos de um carreteiro e uma garrafa de vinho para arrematar a música - conta Borges.
Novamente, Borges não levou o grande prêmio - ganhou, em vez disso, o troféu na categoria Linha de Manifestação Rio-Grandense e viu Romance na Tafona se tornar número obrigatório em seus shows até hoje. Mas a surpresa maior veio na volta do festival: já em Santa Maria, enquanto tomava um café com Antonio Carlos, acabou topando sem querer com a Maria, já bem velhinha, caminhando amparada pelo filho, fruto do amor com Pacácio.
- Foi um encontro inusitado, mas muito bonito - lembra Borges.
Sem se entregar "pros home"
Foi em uma viagem de ônibus das mais atribuladas que Não Podemo se Entregá pros Home nasceu. Um dos seus autores, Chico Alves, conta que a banda voltava de um show quando uma barreira policial se fez avistar. Embriagado, um músico começou a gritar que o motorista deveria passar reto. "Não vamos parar, não vamo se entrega pros home!", bradava. Parceiro de Chico, Humberto Zanatta gostou da frase e a colocou junto do dito gaudério, "Não tá morto quem peleia". Para finalizar a música, chamaram Francisco Scherer, terceiro compositor da canção.
Defendida na 10ª Califórnia pelo cantor Leopoldo Rassier, Não Podemo... foi sucesso imediato. Durante o festival, chegou a ser dedicada ao poeta Mario Quintana, que na época pleiteava uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Quem não gostou muito foi a Polícia Federal, que, em pleno ocaso da ditadura militar, chamou os compositores para explicarem o conteúdo da letra.
- Eles queriam saber se a gente estava falando do governo, da polícia. Dissemos que não, que falava sobre o gaúcho que não aceita a pulverização da sua imagem ante o progresso - conta Chico. - Mas hoje vejo que o sucesso dela é justamente por permitir várias interpretações. Já vi grevistas, torcidas de futebol e até grupos políticos cantando ela.