Você já se perguntou por que o número de bandas de rock com mulheres é inferior ou menos visível do que o número de integrantes do sexo masculino? Ou por que o público de determinado gênero musical é majoritariamente masculino? Já observou quantas mulheres estão no mesmo patamar de credibilidade de headliner em um festival de música eletrônica ou que ganham o mesmo cachê na cena eletrônica que um produtor como Richie Hawtin? Já pensou sobre a discutida relação entre pós-feminismo, sexualidade e as funkeiras cariocas como Valeska Popuzada e outras? Já ouviu falar sobre a polêmica a respeito de um suposto "embranquecimento" de Anita que chegou aos jornais estrangeiros? Reparou como muitas das críticas à tour de Madonna em 2012 centravam-se no fato de seu envelhecimento, relacionando com o comportamento não adequado em relação a sua idade? E naquele momento em que você cantarola no chuveiro alguma canção de MPB - já pensou nos modelos e na representação das mulheres de Chico Buarque, de Vinicius de Morais? Já se indignou com a Amélia, "a mulher de verdade"?
Se você não tem respostas prontas para as perguntas acima, tenho uma boa notícia: eu também não, mas questionar é preciso. Primeiramente, é preciso esclarecer que na língua portuguesa há uma "pegadinha" semântica no que tange à palavra gênero. Em inglês temos o termo genre para designar gênero literário, cinematográfico, musical etc; e gender para tratar do gênero relativo à sexualidade. Em português, utilizamos a mesma palavra para ambas as questões. Não é mera coincidência que nossa língua expresse em apenas um termo dois conceitos tão complexos. As questões políticas e estéticas sobre gêneros e a cultura musical pareciam passar despercebidas no contexto musical brasileiro até bem pouco tempo atrás, seja nas discussões cotidianas, seja nas teorias. Dessa complexidade toda, e também de várias pesquisas e polêmicas surgiu minha vontade de abordar a relação entre mulheres e música.
Nos últimos tempos, as questões relativas a gênero têm sido cada vez mais discutidas pela sociedade e, evidentemente, não abrangem apenas as mulheres, mas também transexuais, homossexuais, lésbicas, entre mil outras designações. A discussão de fundo nas ciências humanas e sociais é a de que sexo é biológico, mas gênero é uma noção sociocultural construída em diferentes contextos, tempos e espaços, além de ser parte integrante de nossa marca de identidade. Não cabe aqui discorrer sobre as diferentes teorias que tratam da construção social dos gêneros como o feminismo, a teoria queer ou mais recentemente os chamados estudos pós-feministas.
O que interessa é pensar que as noções de gênero perpassam todos os campos da sociedade e, em tempos de cultura midiática e de tecnologias, tornam-se cada vez mais visíveis os embates a partir dessa relação. Os gêneros e as cenas musicais estão inseridos nesse contexto e assim participam dessa constituição, para o bem ou para mal, e representam e veiculam as imagens que vemos sobre as mulheres, os travestis, os homens etc. Escolhi tratar aqui das relações entre música e mulheres por estar inserida nesse contexto e por ser parte de um imaginário muitas vezes envolto no preconceito.
Assim é importante pensar que, no âmbito da cultura pop, há disputas simbólicas e relações de poder ou de "empoderamento" a partir de um determinado gênero musical. O Heavy Metal e derivados, por exemplo, durante muito tempo foi tratado pela mídia como algo violento e cujo público era predominantemente masculino. Com o tempo, as mulheres passaram a adentrar as diferentes cenas e a participar como consumidoras e também produtoras e assim impor diferentes representações em termos visuais e até mesmo sonoros à estética e às regras do gênero.
Construída inicialmente a partir da intensa relação entre homens e máquinas - praticamente nunca falamos mulheres e máquinas - a música eletrônica também não fica imune a essas conturbadas discussões. Lembro de que há uns anos havia uma polêmica na mídia especializada a respeito de DJanes que utilizavam mais o corpo para agitar as pistas do que as mixagens ou a pesquisa sonora. O tempo passou e debates similares estão acontecendo a respeito das letras sexualizadas do funk carioca. De um lado, temos os que defendem o uso de letras agressivas feitas por mulheres enfatizando o caráter de empoderamento e de visibilidade do próprio corpo. Do outro, os que atacam essa atitude dizendo que ela, de certa forma "anula e inviabiliza" o empoderamento das mulheres por ainda continuarem dentro de padrões preestabelecidos de beleza, sim, aqueles contra as quais muitas feministas se rebelaram na efervescente década de 1960.
Eu poderia continuar dando exemplos e contraexemplos nos mais variados gêneros musicais como o rap, nos videoclipes de estilo gangsta, no qual temos desde as representações masculinas de Cafetão (Pimp) e de Vadia (Bitch) ou o rap de protesto, que procura mostrar a realidade das ruas; ou o punk rock, que já no final dos 1970 e no início dos 1980 incorporava algumas minorias como as mulheres ou os transexuais nas letras, vestimentas ou discursos. O pós-punk inglês e o chamado "rock gótico" sempre incorporaram elementos tradicionalmente vinculados à feminilidade, como vestimentas afetadas e letras aparentemente sentimentais. A androginia de Bowie a Placebo, por exemplo, sempre foi um elemento importante para se pensar o glam rock e vários outros gêneros e constituiu uma frente questionadora em relação a boa parte da imprensa predominantemente masculina que sempre escreveu sobre música.
Nos anos 1990, o rock alternativo/indie, herdeiro direto da atitude DIY (Do It Yourself ou "Faça Você Mesmo" em bom português) viu surgir uma série de bandas de sucesso com integrantes mulheres e que ganhavam tanta credibilidade na imprensa e na crítica musical quanto os homens, independentemente do rótulo de "bonita", como acontece muito no pop. Pixies e Sonic Youth são bons exemplos. Por falar em Sonic Youth, Kim Gordon, que se divorciou há pouco do parceiro de banda e de casamento Thurston Moore, deu uma entrevista recente reclamando da falta de empoderamento feminino no seriado Girls (da HBO) e tecendo digressões sobre o papel da mulher na música.
Em minhas pesquisas, recentemente encontrei um blog produzido por uma mulher e que retrata fotos das reações corporais de mulheres durante as performances de noise - um gênero musical extremo. A maioria das fotos mostra homens se divertindo e participando da performance e mulheres sentadas, com as mãos nos ouvidos, ou viradas de costas para os equipamentos. São imagens bastante significativas e simbólicas de como determinado gênero musical se constitui e de que forma suas regras são internalizadas pelos atores sociais.
Para finalizar, confesso que meu objetivo aqui era apenas sensibilizar os leitores e as leitoras a prestar mais atenção a essas questões e que elas não estão restritas apenas ao domínio dos ativistas e manifestantes políticos ou dos movimentos sociais. Em tempos de controvérsias e discussão em rede, a música também é uma importante forma de comunicação e de representação de gênero, que pode enfatizar estereótipos ou desconstruí-los. Nos últimos anos, vários autores do campo dos estudos culturais e da comunicação têm refletido sobre como analisar tais articulações entre mídia, música e gênero tanto abordando práticas misóginas dentro das diversas cenas musicais, como observando e analisando diferentes tipos de representações e estereotipias - reivindicando um papel mais ativo para a presença feminina no âmbito da produção, sobretudo no que tange a gêneros musicais mais extremos e relacionados àquilo que denominamos arbitrariamente de "masculino".
Questão de gênero
Questão política e estética de gênero na música ganham espaço para discussão
No âmbito cultural, existem disputas simbólicas e relações de poder
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