Se o gauchismo celebra, a cada setembro, uma espécie de culto de identidade cujo proselitismo radical tem muito de religioso, não é de estranhar que essa celebração se organize em torno de um mito: a Revolução Farroupilha. Mas, como todo mito, sua construção se deu por seleção de alguns aspectos em detrimento de outros. Na crônica hegemônica da revolução, seus heróis são estancieiros brancos, homens, e o triunfo cultural do tradicionalismo apagou com uma narrativa uniforme a resistência que algumas das principais cidades do Estado ofereceram às pretensões farroupilhas.
A construção da mitologia farroupilha passa ela própria por marés ideológicas. Apostando na reconciliação nacional, a historiografia oficial por muito tempo preferiu enfocar aquilo que unia os revoltosos ao Império contra o qual lutavam. Nessa primeira fase, reduziram-se as referências às influências platinas dos farroupilhas.
No momento em que Getúlio Vargas assume o poder, com a revolução de 1930, ganha mais força o discurso conciliador, e as histórias escritas sobre a revolução no período - por intelectuais como Dante de Laytano ou Othelo Rosa - minimizam o caráter separatista do movimento, em consonância com a política de integração de Vargas, que torpedeava as manifestações estaduais de autonomia. A voz dissonante é a do porto-alegrense Alfredo Varella, para quem as "intenções separatistas do Rio Grande do Sul na primeira metade do século 19 e a existência de influências platinas nos hábitos e nos costumes" eram um fato, como recupera Ieda Gutfreind em A Historiografia Rio-Grandense (EDUFRGS, 1998)
O Rio Grande aceitou essa versão enquanto teve projeção política real, na figura de Vargas e seus principais correligionários rio-grandenses. Depois do fim da ditadura do Estado Novo, que cumpriu parte de um projeto modernizador, surgiu o tradicionalismo - para preservar como tradição um mundo que seria radicalmente alterado ao longo do século 20. Ganha impulso ao longo de outro regime ditatorial, o dos militares, que, ao contrário de Vargas, valorizavam as manifestações regionais em seu projeto "moral e cívico".
O tradicionalismo é cultura, uma vez que seu apelo encontra eco legítimo em uma multidão de seus adeptos. Talvez, apenas, seu caráter de preservação do passado o torne refratário a reescrever seu mito para abranger outras versões que não a dos cristalizados heróis de sempre.