Talvez seja uma necessidade subliminar de ir preparando o centenário dele, mas o fato é que mais coisas de Vinicius de Moraes têm caído nas minhas mãos do que normalmente já caem por força de gosto ou profissão. Num canto escondido de uma livraria, encontrei o Cancioneiro Vinicius que a Jobim Music publicou há alguns anos e que agora começa a escassear. Ainda não é um "esgotado no fornecedor" dos sites das livrarias e, mesmo assim, é coisa difícil de encontrar. E, talvez na mesma livraria, encontrei um livrinho, Jazz & Co., e fiquei a perguntar "isso é Vinicius e conheço ou não conheço?". Uma coisa levou a outra, e terminei ouvindo as canções de Vinicius mais do que desejava ou pretendia.
Jazz & Co. vem numa edição primorosa - e escrever "edição primorosa" é cair numa dessas expressões de bolso que são marca do mau jornalista e do intelectual de meia-tigela, mas enfim. Um livro quadrado, reminiscente do formato do vinil de 45 rotações, uma música de cada lado, que foi, durante décadas, o formato clássico para lançar músicas no mercado antes de forçar o ouvinte a comprar um álbum mais gordo com mais músicas do que apenas duas. Uma amostra quase grátis, digamos. No livro, estão recolhidos os textos de Vinicius de Moraes sobre jazz, organizados e introduzidos por Eucanaã Ferraz, que fornece todo o contexto necessário - biográfico, sociológico, ideológico - do que se vai ler. Em seguida, vêm os textos. Alguns já tinham aparecido em outros lugares, primordialmente nas obras completas do poeta, mas comprá-las é um assalto à mão armada e assim se chega à conclusão que o formato fofo do livro tem mesmo razão de ser: eis o 45 rotações de Vinicius. O essencial do seu jazz.
É possível discutir se os conceitos jazzísticos do poeta estão corretos etnomusicologicamente ou antropologicamente. Os dessas áreas que passem os seus julgamentos. Eu, por mim, acho que não. Mas não é disso que se trata. Jazz & Co. trata da reflexão - não, mais do que da reflexão, do entusiasmo - de um letrado que de repente se encontra numa profissão asfixiante, a diplomacia brasileira, e que vê no jazz, cujas fronteiras de gosto pessoal ele define bem, o seu bote salva-vidas. Bessie Smith e Duke Ellington. São os nomes que ficam na memória do leitor e que dá vontade de ouvir e reouvir, como se fosse possível encontrar, em nós, uma audição como se fosse a de Vinicius. Como isso é impossível, aí está o objetivo do texto do poeta - criar, diante do leitor, a emocionalidade, a centralidade do jazz. Ou, ao menos, uma emocionalidade, uma centralidade, um jazz. Como diria Stephen Dedalus: "Inelutável modalidade do visível, vista através de meus olhos..." - no caso, ouvidos - "...ao menos isso, se não mais".
Jazz & Co. está cheio de fotos, diagramas, reproduções de datiloscritos, ilustrações variadas. O papel é grosso. Cada texto tem seus hiperlinks e, num folhear, deixa escapar as imagens e as cores e, na impossibilidade de exalar sons, vem dali um aroma bom de livro novo que talvez até tonteie o leitor na sua potencialidade de memória, na sua ampliação de conteúdo. Bessie Smith e Duke Ellington. Ainda não voltei a eles depois de ler o livro, embora parecesse coisa urgente. Preferi voltar a Vinicius e a um álbum que não ouvia há décadas, o Vinicius e Odete Lara de 50 anos atrás e que tem exclusivamente músicas dele na parceria com Baden Powell, repertório de respeito de certa fatia da canção brasileira.
Mas é que ouvir disco tão antigo é, senão uma tortura, pelo menos uma penitência. E das grossas. Ele não é mau cantor, e ela, menos ainda. As canções, algumas delas, entraram no repertório. Há, no entanto, a maldição da gravadora Elenco, que, a par de bons serviços prestados, tinha uma engenharia horrorosa e envolvia as vozes num eco metálico que as afundava num hangar vazio. E os arranjos são horripilantes! Ah, a canção brasileira dos anos 1960: ouvi-la é ajoelhar-se em chão duro e bater no peito até doer. Disso, nem Vinicius escapa. Ou quem sabe não seja ele, precisamente, um dos seus artífices?
Por isso, corri para o Cancioneiro Vinicius. Lá estão as canções, claro que inanimadas, pois apenas em partitura, e mesmo assim há nelas a chance de imaginá-las como deveriam ser e não como as limitações das gravadoras dos 1960 as aprisionaram. Note-se bem, lá estão as canções - e canção não é só letra, não no repertório brasileiro. Por aqui, não há canção que não esteja ligada umbilicalmente (mas de novo? outra expressão de meia-tigela? "ligada umbilicalmente"?) à sua melodiharmonia (esse é um neologismo meu!) e só assim tudo é compreendido. Mesmo quando as letras são as poesias de Vinicius de Moraes, que, se às vezes cai no melodrama, noutras vezes escreve coisas como História Passional, Hollywood, Califórnia ou Tarde de Jazz, talvez os textos principais de Jazz & Co. ou, pelo menos, os que mais me ficaram na memória e que ainda vão me obrigar (?) a ouvir Duke Ellington e Bessie Smith.