Uma das mais inovadoras companhias de teatro da Europa, a Socìetas Raffaello Sanzio participa pela terceira vez do Porto Alegre Em Cena. O grupo apresenta o espetáculo Sobre o Conceito da Face no Filho de Deus, que estreou na quinta-feira e ainda terá sessões nesta sexta e no sábado, às 21h, no Theatro São Pedro.
O diretor da companhia, Romeo Castellucci, que não viajou a Porto Alegre, concedeu a seguinte entrevista a Zero Hora, por e-mail, da Itália.
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Zero Hora - Qual é a relação entre a grande imagem de Jesus que aparece no cenário e os personagens da peça?
Romeo Castellucci - Pensei em fazer a peça quando estava sentado em uma poltrona de couro sintético, em um domingo à tarde. Estava sozinho na sala e lá fora havia um pouco de sol. Segurava nas mãos um livro de história da arte, e meu olhar deparou com esta magnífica cabeça, um retrato do Salvator Mundi. Percebi que o homem retratado por Antonello da Messina (pintor renascentistas italiano) estava olhando para mim no sentido de que não era eu quem o estava olhando, era ele quem me olhava e me desnudava. Imediatamente, pensei em reproduzir o retrato em tecido, em uma escala gigantesca. Deveria ter o mesmo tamanho de um outdoor, algo que não se pudesse evitar de olhar. Esse rosto, essa pintura, representa a face de um homem. Jesus certamente era um homem. Isso me interessa e me toca. Não importa se é verdadeiro ou falso. Mas a característica dessa pintura consiste no seu olhar e na ambiguidade de sua expressão. Olha para mim, precisamente a mim, e é capaz de me deixar completamente nu, para arrastar-me no chão ao lado dele. Jesus, até onde sei, poderia ter o meu rosto, o seu rosto, o do meu vizinho, o do meu inimigo, mas certamente a minha cara como eu me vejo todas as manhãs, depois de levantar a cabeça molhada da pia. Os sinais que mostro, a ação que se desenrola aos seus pés, apesar das aparências, não são "negativas". Trata-se de mostrar a condição humana, em um De Profundis. Esses homens sofredores são criaturas daquele Deus. Este é um espetáculo sobre o amor e sobre a beleza, mas também sobre o colapso da esperança e da dignidade humana. As fezes são apenas uma metáfora do real. Não há nenhum julgamento sobre o mundo, nenhum julgamento sobre as escolhas dos homens, nem mesmo de Deus. Deixo passar as imagens. Imagens que pertencem à história de cada um de nós. As imagens estão à espera de ser interpretadas em um sistema de sinais, sempre diferentes, assim como são diferentes, uns dos outros, os espectadores. Fim da história.
ZH - Em 2011, uma apresentação da peça foi interrompida em Paris por manifestantes cristãos. Em outra sessão, arremessaram ovos no público. O que chocou estas pessoas?
Castellucci - Durante o espetáculo, jamais foram verificados incidentes, se excluirmos a estreia em Paris, quando um grupo de jovens da Action Française subiu ao palco para mostrar um cartaz. Mas isso aconteceu antes mesmo da ação começar. Nunca houve arremesso de objetos. Todas as pessoas que assistiram ao espetáculo, em todo o mundo, amaram-no e respeitaram-no. Crentes e descrentes. A polêmica tem ocorrido apenas com aqueles que não viram a peça.
ZH - No material de divulgação, você escreve: "Quero encontrar Jesus em Sua mais extrema ausência". O que quis dizer?
Castellucci - Jesus desapareceu da tradição artística por centenas de anos. Não é mais o sujeito e o modelo da pintura e da arte, como tinha sido até o barroco. Eu registro essa ausência e a transformo em um palco.
ZH - A Socìetas Raffaello Sanzio já havia apresentado, em Porto Alegre, os espetáculos Orestea (Una Commedia Organica?), em 1999, e Buchettino, em 2006. O que têm em comum com Sobre o Conceito da Face no Filho de Deus?
Castellucci - Têm em comum o fato de pertencerem à mesma cabeça. Mais do que isso eu não posso dizer porque me encontro na posição mais míope para poder julgar de fora o meu trabalho. De qualquer forma, trata-se de trabalhos nos quais o radicalismo é expresso de forma completamente diferente.
Entrevista
"A polêmica tem ocorrido apenas com aqueles que não viram a peça", diz Romeo Castellucci
Em entrevista a Zero Hora, diretor da Socìetas Raffaello Sanzio fala sobre o espetáculo "Sobre o Conceito da Face no Filho de Deus", que a companhia italiana traz ao 20º Porto Alegre Em Cena
Fábio Prikladnicki
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