Um dos principais pesquisadores contemporâneos do cérebro é também um cientista que defende que o entendimento da atividade cerebral passa pela compreensão das emoções humanas. António Damásio vem a Porto Alegre para conferência em 24 de junho como resultado de uma parceria entre o Fronteiras do Pensamento e o Seminário Mente e Cérebro. Confira nossa conversa com o neurocientista:
Qual é o recorte que o senhor pretende dar, em sua palestra, dentro dos campos que o senhor vêm trabalhando?
António Damásio: O tema geral é a forma como o cérebro constrói a mente humana e o seu comportamento. Vou dar também uma ênfase especial ao papel que as emoções e os sentimentos têm na regulação do comportamento humano, porque as emoções e os sentimentos são extremamente importantes na forma como guiam o nosso pensamento e o nosso comportamento.
É esse um dos temas centrais de seus livros, À Procura de Espinosa e E o Cérebro Criou o Homem, por exemplo. É uma abordagem interessante porque durante muito tempo, na história da Ciência, o estudo do corpo separava-o das emoções, relegando-as a outro espaço, quiçá metafísico. O senhor defende que elas são parte de um processo de ajuste do próprio corpo?
A. D.: Exato. Aquilo que é preciso compreender é que não se pode ter nem mente humana nem comportamento humano sem haver corpo. São duas coisas que estão perfeitamente ligadas. E por outro lado há também o fato de que as emoções são reações que acontecem no corpo e que têm uma maneira de ser vividas, de ser experimentadas no pensamento, na mente, e é a isso que se chama sentimento. E o valor das emoções e do sentimento é muito grande, porque funcionam como uma espécie de guia, de bússola de nosso comportamento. Elas marcam momentos para que possamos recuperá-los como uma espécie de norte.
Há muitos anos veicula-se o mito de que o cérebro é uma espécie de terra incógnita da qual se conhece muito pouco, seria a última fronteira ainda inexplorada pela evolução do conhecimento a respeito do corpo humano. Esse mito tem uma base fundamental ou é um equívoco frente às descobertas mais recentes?
A. D.: Há uma conquista extraordinária, e é evidente que hoje temos um conhecimento sobre o cérebro que nem mesmo há 20 anos tínhamos. Por outro lado, é preciso pensar que o conhecimento ainda não é suficiente para compreendermos tudo. É um conhecimento muito alargado hoje em dia, que nos permite ter a noção de como os processos básicos funcionam, mas continua a haver imensas incógnitas, que em grande parte serão resolvidas com uma intensa pesquisa nos anos que se seguem. O futuro imediato, muito particularmente os próximos 10 anos, vão trazer inumeráveis respostas para essas incógnitas. Isso é uma coisa que é extremamente importante, não só para termos ideia daquilo que somos como seres humanos e sociais, e tem enorme repercussão do ponto da vista da vida social, da economia, da política, do nosso comportamento como membros de uma sociedade, mas também tem imensa importância para resolver problemas médicos. Por exemplo: doenças como a depressão, a dependência de tóxicos ou a doença de Alzheimer são problemas que só se pode tratar adequadamente quando tivermos a compreensão mais alargada de como essas doenças ocorrem no cérebro e de como são organizados os processos que levam à doença. Portanto, a investigação científica no domínio da neurociência é extraordinariamente importante do ponto de vista humano em geral, para a elucidação daquilo que somos, mas também tem uma importância muito particular para o tratamento das doenças do sistema nervoso, que hoje em dia de certo modo dominam as patologias que encontramos pelo mundo inteiro, tanto entre jovens quanto em pessoas idosas.
O senhor também fala muito sobre como o organismo e o meio ambiente interagem, e de como o ambiente por vezes interfere na própria biologia. O ser humano como personagem social criou um ambiente que, por vezes, pode ser bastante hostil: multidão, poluição atmosférica e muito barulho. Como o ser humano poderia lidar melhor com esse ambiente que ele construiu e que também o constrói?
A. D.: A sua pergunta é muito importante. Porque não há qualquer dúvida de que, por exemplo, o aumento do ruído urbano, com máquinas, diversos motores e mecanismos, o barulho causado pelos transportes, tudo isso é extremamente traumatizante para o cérebro e até para certos órgãos sensoriais, como a audição. Há pessoas neste exato momento que estão a perder a capacidade auditiva porque há traumatismos aos órgãos de audição. Mas há ruídos de várias naturezas. Há o ruído real, o barulho. É uma ideia disseminada a de que, com o barulho, ninguém se entende, e é verdade. E há o ruído causado pelo excesso de informação. É um ruído intelectual, uma distração constante. Não é possível funcionar normalmente quando se está a ser bombardeado com informação. As pessoas costumavam pensar que o rádio e a televisão eram distrativos, mas não são nada comparados ao que está acontecendo hoje em dia com as mensagens que as pessoas recebem nos seus telefones portáteis, que recebem através de internet e que constituem uma espécie de distração constante em relação à realidade que nos rodeia. Tudo isso são coisas com as quais é preciso lidar de forma muito direta, mas, uma vez mais, para dar uma resposta eficaz, é preciso perceber qual é o efeito que esses vários desenvolvimentos têm sobre o cérebro humano. Porque não é só dizer que há barulho demais e devemos acabar com ele. É preciso explicar para as pessoas o que realmente se passa e que é negativo para o cérebro humano.
E em linhas gerais, o que se passa? Quais são esses efeitos?
A. D.: Por exemplo: é preciso fazer compreender às pessoas que, para absorver um problema, para ter a ideia dele e poder imaginar suas soluções, é preciso ter atenção contínua, a atenção não pode ser constantemente interrompida por novos estímulos. É preciso também que haja essa atenção contínua, porque sem isso não é possível haver memória, a memória não funciona bem quando há interrupções, e tudo isso se reflete portanto, na qualidade, no comportamento, na maneira como conseguimos responder às situações em que nos encontramos.
No sistema de produção do capitalismo volátil contemporâneo, um funcionário é interrompido a cada 10 ou 15 minutos ao longo da jornada de trabalho. Essas interrupções fazem parte de um sistema de produção que provavelmente não vai mudar a curto prazo e que tende a se intensificar. Talvez tenhamos que lidar com a ideia de que o cérebro humano vai se tornar outra coisa?
A. D.: É evidente que só há duas funções: ou a sociedade de informação muda, o que é improvável, ou muda o cérebro. Portanto, é muito provável que o cérebro humano se adapte a todo este assalto da informação. Por outro lado, o que seria melhor era que acontecesse duas coisas: que houvesse a adaptação do cérebro, evidente, mas que, por outro lado, a sociedade da informação percebesse quais são os riscos e pudesse modificar de uma forma inteligente este assalto que estamos a sofrer.
António Damásio no Fronteiras do Pensamento
24 de junho de 2013, às 19h30, no Salão de Atos da UFRGS (Av. Paulo Gama, 110 - Porto Alegre - RS)
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