Zero Hora - Onde o senhor nasceu e cresceu? Quem eram seus pais? Como foi sua educação?
Spencer Leitman - Nasci em Yonkers, Estado de Nova York, em 1943. Tenho 68 anos, mas sou atlético. (Risos.) Participo de uma prova de triatlo por semana, sou fanático. (Mais risos.) Gosto muito disso, é parte da minha vida. Meus pais, ambos já falecidos, eram professores universitários. Meu pai foi professor de física, química e espanhol, e minha mãe, de inglês. Graduei-me em 1965 na Universidade do Estado de Nova York, em Buffalo (Estado de Nova York), uma instituição estadual, e obtive meu mestrado em 1967 na Universidade do Texas, em Austin, também estadual. Naquela época, era muito raro um estudante do norte dos EUA ir até o sul do país para estudar.A Universidade do Texas tem tradição em estudos latino-americanos, além de uma biblioteca incrível, uma das maiores do mundo. Eu era um estudante pobre, casado, e a universidade oferecia um curso rápido de português, de verão. Os interessados recebiam bolsas de US$ 400 (cerca de R$ 730). Era uma montanha de dinheiro. Disse a minha mulher: "Você deve fazer o curso também". E ela:"Por quê? Eu não sei nada de português,não preciso disso".Respondi: "O governo vai nos pagar US$ 400 a cada um". Acabamos ingressando os dois no curso e gostamos muito. Foi formidável, gostamos muito do idioma, da música, da cultura em geral. Somos fanáticos pelo Brasil. Orientei meus estudos para a área de Brasil. Essa foi a razão. Aquele foi um momento muito importante de nossas vidas.Em 1972, obtive meu doutorado pela Universidade do Texas com uma tese que deu origem a Raízes Socio-econômicas da Guerra dos Farrapos.
ZH - O que lhe atraiu na história do Rio Grande do Sul?
Leitman - O Texas é muito diferente dos demais Estados americanos. Tem cultura e história ligadas à criação de gado. Está na fronteira com outro país - no caso,o México.Foi um Estado independente, que fez uma revolução republicana contra os mexicanos. Tem um povo miscigenado, de colonos brancos, índios e escravos. Tem uma identidade de cowboys, algo similar aos gaúchos. A identidade texana é bem diferente do resto do país, e quando eu estava estudando a história do Brasil encontrei o Rio Grande do Sul.Essas coisas me causaram uma forte impressão. Era um Estado também diferente do resto de seu país.
ZH - Não há muitos livros dedicados a analisar o papel da infraestrutura econômica na marcha de acontecimentos como a Revolução Farroupilha. Como o senhor chegou a essa abordagem?
Leitman - Estudei a Guerra Civil Americana (1861 - 1865). A bibliografia sobre a guerra chega a cerca de 50 mil livros.A cada ano, mais livros são publicados. Um desses historiadores tratou da questão do algodão na Guerra Civil. Isso me inspirou a investigar as causas econômicas da Revolução Farroupilha, e cheguei à conclusão de que o elemento fundamental foi o movimen to de gado através da fronteira. O movimento de gado e as relações com o Prata foram decisivos
para se desenvolver a mentalidade daqueles que deflagraram o conflito, os estancieiros da região da fronteira. Há grande influência de uruguaios, de italianos como Livio Zambeccari, de intelectuais de Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, mas realmente o braço militar foi dos estancieiros de ambos os lados da fronteira. Eles tinham interesses baseados no gado para entrar numa revolução contra a Corte, no Rio.
ZH - Passados mais de 30 anos da publicação de Raízes, como o senhor vê o componente separatista-secessionista na Revolução Farroupilha?
Leitman - No passado, quando escrevi meu livro, tive um mentor argentino chamado German Tjarks, um grande historiador, já falecido. Ele concordava com Alfredo Varela (historiador rio-grandense, autor de História da Grande Revolução) na concepção de que a Revolução Farroupilha tinha sido separatista. Me somei a essa ideia em meu primeiro livro. Hoje, opino que foi uma guerra de autonomia, inicialmente, e depois uma guerra civil e finalmente uma insurreição. A revolução mudou. Mas, nos primórdios, foi uma revolução por autonomia. Essa é a minha opinião hoje. Mudei. Um historiador é parte da humanidade, e quando se faz novas pesquisas, as ideias mudam.Creio que esses líderes da Fronteira - Bento Gonçalves, Onofre Pires,Antônio de Souza Neto - queriam desenvolver suas estâncias de gado. Eram pessoas fanáticas. Quando Netodisse que seria uma revolução republicana, seus comandados concordaram, mas inicialmente se tratava de um movimento por autonomia. Fundamentalmente, foi uma revolução de estancieiros-soldados para ganhar mais áreas.
ZH - Qual foi o papel do trabalho escravo no contexto da Revolução?
Leitman - É muito, muito complicado. Escrevi vários artigos sobre esse ponto: a vida dos escravos durante a guerra, os soldados gaúchos, os Lanceiros Negros e Porongos. Os países hispanoamericanos também tinham escravidão nas estâncias. Porém, antes da Revolução Farroupilha, se inclinaram por mudanças liberais e introduziram leis e regulamentos para reduzir a escravidão. Os rio-grandenses, não. Eles queriam conservar os escravos. Por essa razão, não podiam ser republicanos independentes. Não respeitavam o homem negro. Queriam conservar a exploração do trabalho manual dos escravos.The question of slavery tied the Farrapo revolutionaries to Rio de Janeiro and Brazil. (Em tradução livre: A questão da escravidão amarrou os revolucionários farrapos ao Rio de Janeiro e ao Brasil.) O Rio e o resto do Brasil eram o mercado central para o charque gaúcho. O charque era a comida mais importante dos escravos e do povo pobre nas cidades brasileiras,na Bahia,no Rio.O Rio Grande do Sul tem essas ligações econômicas com o resto do país. Essa relação com o resto do Brasil foi bem difícil de eliminar. Os estancieiros-soldados só queriam mais pastagens e mais gado para vender ao resto do Brasil. (Pausa.) Mas essa é a minha opinião, outros têm outras ideias.
ZH - Alguma vez o senhor se inclinou a pesquisar o papel dos poucos americanos envolvidos na Revolução?
Leitman - O papel deles foi interessante como parte da tripulação de Garibaldi. Mas não foi importante durante a guerra. Foram três ou quatro americanos, todos marinheiros. Os italianos e os uruguaios têm mais importância.
ZH - Alguns historiadores citam um suposto apoio financeiro de sociedades americanas aos farrapos. Isso faz sentido?
Leitman - Acho que não. A influência dos americanos foi política, como a Constituição. Há um intenso tráfico mercantil entre os dois países nos anos anteriores à guerra.Antes do início da Revolução, 50 barcos americanos visitaram os portos de Porto Alegre e Rio Grande.Venderam sal e compraram couro e um pouco de carne. O couro era, na época, o que o plástico é hoje. Foi a idade do couro. O Estado de Massachussetts, nos EUA, era um centro fabril de couro vindo do Rio Grande do Sul, da Argentina. Durante as Guerras Cisplatinas, o Rio Grande era um grande centro plantador de trigo. Por que desapareceu? Dizem que foi a ferrugem (um tipo de praga). Em parte, é verdade. Mas os americanos, nesse meio-tempo, desenvolveram grandes plantações de trigo no Meio-oeste e construíram canais para escoar a produção até os grandes portos de Nova York e Filadélfia. O excedente dessa produção foi levado para o Rio Grande: um produto melhor, com preço mais baixo. Vendiam trigo e compravam couro. Foi um negócio perfeito para os americanos. Eles sabiam que os rio-grandenses produziam couro e precisavam de sal. Os americanos de Massachussetts e Rhode Island iam para as ilhas de sal perto dos Açores e levavam sal para o Rio Grande, negociado em troca de couro. Nessa época, os americanos também exportam o cobre que serviria para fazer moedas no Brasil. O Rio Grande do Sul foi bem conhecido aqui (nos EUA). Basta ler as coleções de jornais do século 19. Sabemos muito sobre a economia e a política do Rio Grande do Sul e do Rio da Prata.
ZH - O que não foi estudado suficientemente em relação ao período farroupilha?
Leitman - Há muito o que estudar, porque a guerra dura 10 anos. Temos, por exemplo, dois ou três livros sobre a vida de Bento Gonçalves da Silva, mas precisamos de outros. Certa vez conversei com um descendente de Bento Gonçalves e lhe perguntei se tinha mais documentos.Talvez existam documentos fora dos arquivos rio-grandenses sobre Bento,Antônio Neto, Onofre Pires. Não temos todas as ligações entre as grandes famílias estancieiras. Os jovens historiadores riograndenses estão estudando a vida dos escravos durante a guerra, as relações entre os Estados platinos, o Rio e o Rio Grande do Sul. Não temos histórias profundas. Como o Brasil está ganhando um lugar no mundo, com dinheiro e poder, há recursos para produzir historiadores.
ZH - Sobre o que trata seu próximo livro?
Leitman - Estou considerando vários títulos neste momento.Um deles é Promessas Quebradas, Lanças Quebradas - Sobre a História Afrobrasileira. Outro é Dentro da Revolução Farroupilha.Mas quero dizer outra coisa sobre minha vida. Por mais de 30 anos, deixei de fazer pesquisas. Me tornei empresário para ganhar a vida.Atualmente, crio brinquedos e sou vice-presidente de uma
nova empresa que fabrica uma solução para abafar gás metano liberado pelo papel em decomposição. Mas, há cinco ou seis anos, o historiador rio-grandense Gunter Axt me convidou para um seminário sobre a Guerra dos Farrapos.Tenho na
minha casa uma biblioteca de 2 mil livros, e mil são sobre o Rio Grande do Sul. Na época, eu lhe disse:"Vou escrever um novo livro sobre a Guerra dos Farrapos". Fiz meus primeiros estudos nos arquivos do Brasil: Itamaraty,Arquivo Nacional, arquivos e bibliotecas do Rio Grande.Tudo foi feito em menos de um ano. Não é tempo suficiente. Na época, não havia fotografia digital. Eu fiz tudo como Alfredo Varela. (Risos.) Copiando à mão! Hoje, a Coleção Varela está disponível online. Eu usei realmente os documentos que Domingos José de Almeida manuseou. Mas foi muito difícil. As caligrafias eram diferentes. Mas agora há pessoas especializadas nesse trabalho. Fiz esses primeiros estudos ainda jovem, e por essa razão acho importante retornar a esse trabalho. Meu primeiro livro e meus artigos são mais acadêmicos. Creio que posso entrar mais na imaginação da época agora. Sou mais velho, tenho mais ideias. Estou sempre pensando sobre a Guerra dos Farrapos. Não sei por quê. (Risos.) Foi uma grande revolução,muito complexa.A cada dia estou pensando, por exemplo, no papel dos cavalos. Eles foram mais importantes do que os homens livres e os escravos. Sem eles, não haveria guerra. Outros historiadores falam sobre isso, mas não fazem estudos. Varela tem talvez um parágrafo sobre isso,Adriana Barreto de Souza (historiadora, autora da biografia Caxias) fala muito sobre Caxias e cavalos.