Nascido em 1959, Paulo César "Foguinho" Teixeira frequentou a esquina maldita. Mas só a partir do fim da década de 1970, quando o fumacê do lugar começava a se dissipar e seu olhar de menino ainda não era plenamente capaz de captar a complexidade daquele entorno.
> Livro reúne relatos sobre reduto da boemia porto-alegrense
Muito dessa complexidade se deve à representatividade política e cultural que os bares do encontro da Sarmento Leite com a Osvaldo Aranha adquiriram: como um espelho, Alaska, Marius e companhia refletiam as mudanças mais significativas verificadas no comportamento dos porto-alegrenses à sua época, da incorporação de preceitos do movimento hippie à necessidade de se articular para lutar contra a repressão do governo militar. As histórias e os personagens citados nesta página dão uma ideia do tamanho do resgate promovido por Esquina Maldita, o livro.
Acapulco, Alaska, cozinha alemã
Quem abriu o Acapulco, primeiro botequim da esquina maldita, em 1958, foi Lawson "Filhinho" Pereira. "O homem tinha predileção por duas coisas: fazer sorvetes e amar mulheres com o nome Terezinha", escreve Foguinho em Esquina Maldita, referindo-se a seus negócios (mais tarde, ele fundaria a sorveteria Schuck, em Capão da Canoa) e a seus dois casamentos (coincidentemente, com mulheres de mesmo nome).
"O Acapulco era o grande point - a gente dizia com acento francês", sublinha o jornalista José Antônio Severo em artigo no site Sul21 reproduzido no livro. "O Filhinho era um gentleman: fiava irresponsavelmente para aquela clientela de estudantes duros; seu garçom Alfredo era um amigo de toda a freguesia", acrescenta.
Pois foi o mesmo Alfredo, de sobrenome Ribeiro, que, com a mulher Diaci, fundaria o Alaska, o mais afamado bar da região, em 1965. Ele nasceu em Pelotas. Decidiu ser garçom após anos de trabalho na roça em regiões habitadas por descendentes de alemães, o que explica o menu "germânico" do bar - definido pelo cenógrafo e dono do Ocidente Fiapo Barth como "fast-food alemã".
Farta e barata, a comida do Alaska brincava com ícones da época, relata Foguinho: o Aterro (referência ao lago Guaíba) continha salada de maionese, chucrute e banana à milanesa; o Robertão (alusão ao torneio de futebol disputado entre 1967 e 1970) adicionava recheio de presunto e queijo e lombinho de porco; o Vietcong (contra o império norte-americano até no nome!) tinha como diferencial uma salsicha mais cozida; e o Burguês dava ao cliente o luxo de comer dois lombinhos de porco. "Meio mal de grana, pedia um Vietcong. Mais folgado, atacava de Burguês", comenta, no livro, Raul Pont, que foi prefeito de Porto Alegre entre 1997 e 2000.
Uma estrangeira em Porto Alegre
Não precisava ser frequentador da Esquina Maldita para ter visto Nega Lu cantar Summertime nos bares da Capital. Mas foi na Sarmento com a Osvaldo que a bailarina e garçonete fez suas mais inusitadas e lendárias performances.
Ela, na verdade ele, batizado Luiz Aírton Bastos (1950 - 2005), é desses personagens que brilhariam mesmo numa galeria dos mais reluzentes nomes da noite porto-alegrense. O relato de Esquina Maldita lembra suas frases de efeito ("Sou uma mulher de pouca maquiagem, mas que sabe usar os talheres") e ressalta seu pioneirismo ao chamar a atenção para a condição homossexual e ao cavoucar espaço nas companhias de dança (até então bastante restritas).
O diretor teatral Júlio Conte escreveu um conto sobre um encontro (fictício!) de Nega Lu com o escritor Albert Camus. Após se encharcar de absinto no Alaska e esticar a noite nos inferninhos da Voluntários da Pátria, Camus, que era francês nascido na Argélia, teria revelado se sentir um "estrangeiro" em sua própria pátria. Ao que Nega Lu respondeu: "Imagina eu, negro, pobre e veado, que canta jazz e mora em Porto Alegre".
Já que o cartório é aqui ao lado
Em 1967, duas moças (as irmãs Cleusa e Cleia Mattos) causaram furor ao desfilar de minissaia na Rua da Praia. Aquele foi também o período em que as mulheres começaram a sair à noite com mais frequência na Capital. O point da Sarmento com a Osvaldo, no auge à época, logo se transformou num território de liberdade no qual se tornou natural ver relacionamentos nada ortodoxos, como, por exemplo, aqueles compostos por mais de duas pessoas - "Demonstrar sentimento de posse nas relações amorosas constituía grave equívoco", afirma o jornalista Milton Ribeiro em Esquina Maldita.
Alguns casamentos - tradicionais ou nem tanto - foram literalmente realizados naqueles bares. Isso porque, de 1957 a 2011, o cartório da 4ª zona da cidade se localizava ao lado do Alaska. Em 1974, relata Foguinho, houve grande festejo para a união da atriz Lourdes Ely com o diretor de teatro Dilmar Messias. Um ano antes, a também atriz Haydée Porto e o economista Rubens Soares de Lima escolheram o último horário disponível no cartório, o das 17h30min, para emendar com a festa no botequim - o que foi possível porque o camarada Alfredo Ribeiro fez a gentileza de abrir seu bar mais cedo.
"A festa transcorreu em estilo genuinamente riponga", escreve o autor. "Como ninguém se lembrou de levar buquê, foi preciso improvisar um galho de palmeira. (...) Seu Alfredo, pai de Haydée, pediu emprestada a bandeja do garçom Elpídio, a qual passou entre os convidados a fim de angariar ajuda para pagar a conta. A operação foi um sucesso".
A vanguarda indiscutível da luta popular
Antes do golpe militar de 1964, os bares da esquina maldita já sediavam acaloradas discussões políticas e reuniões de campanha em eleições do centro acadêmico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFRGS - como aquela que consagrou vencedor o então estudante de filosofia Flávio Koutzii, em 1963.
Naquelas noites que passou ao lado dos companheiros de luta e boemia, relata o hoje ex-deputado e secretário de Estado em Esquina Maldita, bebia apenas guaraná. "Talvez fosse por certa timidez. Quem sabe, me levasse a sério mais do que deveria", explica Koutzii a Foguinho, para em seguida mudar o discurso: "Não vamos inventar explicações sofisticadas para comportamentos banais".
Nos festejos pela vitória de André Foster nas eleições de 1966 para o mesmo diretório estudantil, foi Marco Aurélio Garcia quem fez um discurso inflamado. Professor de literatura, Sergius Gonzaga lembrou desse episódio no livro Sobre Porto Alegre (1993): "Apesar dos desvios ideológicos de algumas tendências, nos julgávamos a vanguarda indiscutível da luta popular contra a ditadura". Prossegue o atual secretário da Cultura de Porto Alegre: "Muitas passeatas foram tramadas no Alaska. O bar ficava fervilhante, cheio de gente alegre. Depois das manifestações, muitos de nós retornávamos para comentar o que tinha acontecido".
Isake, "o pai de todos"
"Poucas vezes um garçom encarnou tão bem a imagem de um boteco quanto Isake incorporou a do Alaska". A frase de Foguinho sobre Isake Plentis dOliveira (1930 - 2012) foi referendada pelas dezenas de entrevistas que o autor fez para compor Esquina Maldita. "Havia ocasiões em que clientes esqueciam pontas de baseado sobre as mesas. Discretamente, o garçom guardava a contravenção para devolvê-la aos proprietários na noite posterior. Tudo sem fazer alarde, sequer um comentário", completa o jornalista, no capítulo que dedicou a Isake e que intitulou O Pai de Todos.
Quando o Alaska fechou as portas, em 1985, o garçom mais querido da região procurou refúgio no Van Gogh, na Cidade Baixa - mudança representativa do movimento que seria constatado na boemia da cidade. Em 1988, se aposentaria por invalidez (teve osteoporose). "Era saudade dos amigos", explicou ao autor do livro antes de morrer, em julho deste ano. "Fiquei doente quando o Alaska fechou".
À espera de que o tempo se apresse
É longa a lista de projetos artísticos formatados a partir daqueles botecos. Em tempos pré-internet e celular, o conglomerado de bares funcionava como centro de circulação de notícias no âmbito da produção cultural. "A esquina funcionava como um ponto de articulação de profissionais da área da cultura", diz Maurício "Mau Mau" Rosa, técnico de iluminação de espetáculos de música e teatro. "Não se ia lá só para beber".
O encenador Júlio Conte afirma, em Esquina Maldita, que a peça Bailei na Curva "tem a ver com o fascínio de ir lá". O Brique da Redenção surgiu por iniciativa de um jovem casal de artesãos (Berenice Medeiros e Paulo Filber) que se conheceu no Marius (em 1977). Deu pra Ti, Anos 70 (1981), o longa cult dirigido por Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, tem ao menos uma sequência rodada no Alaska. Nei Lisboa, responsável pelo show cujo nome inspirou o título desse filme, homenageou aquele entorno na canção Nem por Força. E Wanderlei Falkenberg e Giba Giba compuseram a música Esquina Maldita (1977) capturando assim a sua atmosfera: "Na minha cidade/ Existe um ouriço/ Que é permanente/ Do vamos fazer, crescer, surgir/ E permanecer// A letra, a tinta, o pincel/ A voz, roucos, calados/ Entrevigiados, cortados, pendurados/ À luz da esquina desta cidade/ Que espera no tempo que o tempo se apresse".
Conversa de botequim
Bares refletiam as mudanças de comportamento nos anos 1960 e 70
Leia histórias contadas no livro 'Esquina Maldita', do jornalista Paulo César Teixeira
Daniel Feix
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