O enredo é conhecido: gênero musical em ebulição se torna fenômeno nacional ao entrar para trilha de novela.
É assim, na carona privilegiada de Cheias de Charme, que o tecnobrega, ritmo paraense frenético, derivado da música de gente como Reginaldo Rossi e Alípio Martins, tem chegado ao resto do Brasil.
Na novela das sete, três diaristas sonham virar estrelas da música e passam a ameaçar o reinado da musa do eletroforró Chayene (Cláudia Abreu). As referências ao ritmo do Pará permeiam a trama - os estúdios caseiros forrados de casca de ovo, o clipe improvisado que vai estourar na internet -, e a música-tema, Ex Mai Love, da rainha do tecnobrega, Gaby Amarantos.
- Ex Mai Love é um brega de raiz - diz Gaby. - Mas, dentro da novela, toda a forma de divulgação e o modelo de mercado fazem referência ao tecnobrega. É um pouco a minha trajetória.
Nos bairros periféricos de Belém, no final dos anos 1990, produtores passaram a gravar faixas baseadas em ritmos populares como o brega e a lambada, muitas vezes com batidas e melodias eletrônicas. Desse cenário surgiu, por exemplo, a Banda Calypso, que recentemente participou de um episódio de Cheias de Charme. Com festas próprias - as chamadas "aparelhagens" - e impulsionados pela venda, em camelôs, de CDs gravados em casa, ritmos como o tecnobrega, o brega pop e o calypso viraram sucesso no Norte e no Nordeste.
Até poderia parecer paradoxal que justo a música do "povão", disseminada via pirataria, chegasse à televisão pela porta da frente. No entanto, há um novo ingrediente em jogo: o direcionamento à classe C assumido pela Rede Globo e refletido em outros espaços nobres da grade de programação da emissora, como a novela das nove, Avenida Brasil - cujo fundo musical é uma releitura do kuduro, sonoridade eletrônica importada de Angola e absorvida por figurões como Latino.
Antes de serem captados pela Globo, esses gêneros conquistaram artistas independentes de outras regiões. Muitos têm lançado discos embebidos em ritmos como o brega e suas vertentes eletrônicas.
- A Céu, o Kassin, a banda Do Amor, conhecem esse som há alguns anos - diz o produtor gaúcho Carlos Eduardo Miranda, diretor musical do disco de estreia de Gaby e idealizador do festival Terruá Pará, que desde 2006 leva a música do Norte para o público do Sudeste.
Segundo Miranda, a presença de Gaby na novela atesta a abrangência de seu trabalho - e, por consequência, de outros artistas paraenses -, tão bem aceito em casas de show alternativas de São Paulo quanto em festivais populares que atraem multidões. Foi esta última febre que o termômetro de Cheias de Charme detectou.
Outras trilhas
As novelas funcionam como termômetros da música que está estourada no país. Confira ritmos que já viraram moda na TV:
Lambada: O fenômeno lambada apareceu na trilha complementar de Bebê a Bordo (1988), Lambateria Tropical, e estourou em Rainha da Sucata (1990), com o tema de abertura Me Chama que Eu Vou, de Sidney Magal.
Sertanejo pop: Barriga de Aluguel (1990) registrou o gênero, com Nuvem de Lágrimas, nas vozes de Fafá de Belém e Chitaõzinho & Xororó. Em 1996, Rei do Gado e sua trilha cheia de nomes consagrados, como Roberta Miranda e Leandro & Leonardo, marcaram a volta do fenômeno.
Sertanejo de raiz: As novelas Pantanal e Ana Raio & Zé Trovão, da Manchete, tiveram trilhas focadas em moda de viola e música caipira, gêneros típicos do Centro-Oeste.
Samba: Para acompanhar o renascimento do samba, Celebridade ganhou trilha complementar com nomes como Zeca Pagodinho, Dudu Nobre e Jorge Aragão.
Fonte: Eduardo EGS, publicitário e autor do blog sobre novelas e trilhas http://eduardoegs.wordpress.com
Estrela de Belém
A rainha do tecnobrega Gaby Amarantos fará turnê na Europa neste ano
Fã de Billie Holiday, nascida em casa de sambistas e ex-coralista de igreja, Gaby Amarantos não honrou família, religião ou ídolos pessoais.
Honrou, sim, a raiz cultural do seu Estado, da sua cidade e de Jurunas, bairro da periferia de Belém, lar de Gabriela Amaral dos Santos e do tecnobrega, gênero musical marginal que ela tem ajudado a projetar para o resto do país.
- Jurunas é o berço do brega. Se você dormir aqui, vai ser acordado por um carro de som anunciando uma festa de aparelhagem, ou uma rádio poste que toca o tecnobrega - orgulha-se Gaby.
Da rádio pirata para FMs: Treme, primeiro disco solo da paraense, tem todos os carimbos que atestam a entrada do tecnobrega no mainstream. Foi lançado por uma grande gravadora - a Som Livre -, emplacou música-tema de novela e tem direção musical do tarimbado produtor Carlos Eduardo Miranda. Gaby é uma estrela nacional: participou de todo tipo de programa de TV, de Domingão do Faustão a De Frente Com Gabi.
Mas não foi sempre assim. Quando o tecnobrega engatinhava, no início dos anos 2000, Gaby abandonou a vida de cantora de MPB e mergulhou no novo gênero, que resgatava a verve sensual do brega, acrescentava batida eletrônica acelerada e sons de sintetizador que mais pareciam efeitos sonoros de videogame do que melodias. A família e os amigos de Jurunas, a princípio, não gostaram:
- As pessoas falavam: "Pô, você é uma supercantora, vai cantar isso?" - lembra a artista.
O TecnoShow, grupo fundado por ela em 2002, foi um dos pioneiros do tecnobrega. Inicialmente consumido pela população da periferia, o gênero se beneficiou de um esquema muito próprio: os artistas gravam suas músicas - originais ou versões para clássicos do pop - com equipamentos simples. Do estúdio, a canção vai para a rádio-poste, o CD pirata no camelô e o carro de som que anuncia a próxima festa de aparelhagem. O ciclo se completa com a gravação dos shows, em que os artistas mandam muitos "alôs" a pedido do público. No fim da festa, o CD com o show gravado é vendido, e quem recebeu o "alô" não pensa duas vezes antes de comprar a lembrança. Assim, o tecnobrega e variações como o eletromelody e o tecnomelody tornaram-se uma febre que aos poucos se espalhou pelo Norte e pelo Nordeste. Em 2010, quando teve filho e decidiu seguir carreira solo, um show de Gaby já valia R$ 50 mil. Segundo Gaby, o valor já passou desse faz tempo.
Treme condensa as referências musicais do Pará e conserva o espírito estético e mercadológico do tecnobrega (é vendido ao preço popular de R$ 14,90). Miranda reconhece que o álbum é um disco de música pop, em que, no entanto, não só o tecnobrega, mas o brega de raiz, o carimbó, a guitarrada e o merengue têm espaço cativo. Gaby considera a nova roupagem um passo à frente:
- Quando o tecnobrega começou, era só batida eletrônica. (A direção musical do) Miranda aprimorou o som sem perder a essência. Ficou mais encorpado, tem muita percussão. É uma sonoridade moderna para os ritmos regionais.
No segundo semestre, Treme levará Gaby a Europa, em sua primeira turnê fora da América do Sul. Hoje, em São Paulo, ela e a Gang do Eletro - grupo de eletromelody, derivação mais nervosa do tecnobrega - se apresentam no Sónar, um dos mais importantes festivais de música eletrônica do mundo. Para a artista, foi sua cara de pau a responsável por levar o gênero - e ela própria - tão longe:
- Um jornalista comparou o que o Bob Marley fez pelo reggae com o que estamos fazendo com o brega - diz, exultante.
Assista ao clipe de Xirley:
Os indies também amam
Em Caravana Sereia Bloom, a paulistana Céu teve inspiração de lambada
O brega é cool. Basta um olhar rápido sobre alguns lançamentos de música nacional para perceber que a veia romântica e exagerada da música paraense tem lugar importante nas misturas que povoam a nova música brasileira.
Entre os fãs de música brasileira mais antenados e sedentos pelo que é novo e inusitado, as referências líricas e musicais da periferia de Belém são velhas conhecidas. Os cariocas Kassin e Do Amor têm discos com inspirações no tecnobrega e no carimbó desde 2007. Em fevereiro deste ano, foi a paulistana Céu quem lançou Caravana Sereia Bloom, um álbum repleto de latinidade em que a cantora namora o brega de raiz e a lambada.
- São ritmos muito simples, bonitos e brasileiros, e têm uma familiaridade enorme com as outras culturas latinas - disse ela em entrevista a ZH à época do lançamento.
Em 2009, Céu havia lançado o disco Vagarosa com a participação do cearense Fernando Catatau. Além de ser um guitarrista requisitado na música nacional - integra as bandas de Otto e Arnaldo Antunes -, Catatau lidera o Cidadão Instigado. Desde 1999, a banda tem lançado trabalhos unindo dois mundos ora distantes: o brega e o rock alternativo.
No meio da MPB, criadores ligados à música eletrônica, como o baiano Lucas Santtana e o paulistano Curumin, que em álbuns anteriores, beberam do funk carioca, também deram pinceladas do som de Belém em seus discos lançados em 2012.
O guitarrista da Comunidade Nin-Jitsu, Fredi Endres, vê no tecnobrega potencial para obter reconhecimento mundial. A Comunidade foi pioneira em misturar o rock e o som do baile funk. Em seu trabalho como DJ Chernobyl, Fredi tem incorporado referências do tecnobrega.
- A criatividade é fundamental quando se precisa fazer música com poucas condições. Me chamou a atenção a originalidade dos arranjos eletrônicos, mesclados com letras populares e ritmo "caliente" - diz ele, que foi requisitado por Gaby Amarantos para remixar Ex Mai Love.
Os holofotes que iluminam a música brega e os gêneros a ela relacionados têm garantido visibilidade a outros artistas (ver abaixo). O paraense Felipe Cordeiro, a franco-guianense radicada no Amapá Lia Sophia e os goianos da Banda Uó são alguns dos nomes que têm conquistado seu espaço no filão. Segundo Miranda, que está produzindo o quarto disco de Lia Sophia, no Norte há uma fila de gente talentosa que ele próprio pretende mostrar. Eles vêm chegando.
Surfando o brega (clique nos nomes para ouvir a música)
Banda Calypso: Embora dispensem efeitos eletrônicos, Chimbinha e Joelma fazem parte da mesma ascensão do brega pop que originou o tecnobrega - e foram os primeiros da turma a estourar.
Felipe Cordeiro: Filho de Manoel Cordeiro, importante produtor de brega e lambada, Felipe lançou em 2011 Kitsch Pop Cult, que herda do pai o ecletismo extremo, de tecnobrega a vanguarda paulista.
Lia Sophia: Nascida na Guiana Francesa, Lia cresceu no Amapá, onde se apaixonou por carimbó, zouk, marabaixo e guitarrada - influências regionais que mistura a pitadas eletrônicas.
Banda Uó: O tecnobrega inspirado em clássicos do pop da Banda Uó foi apadrinhado pelo Bonde do Rolê, e o vídeo de Shake de Amor ganhou o VMB 2011 na categoria webclipe.
Gang do Eletro: Tocam eletromelody, resultado da mistura do tecnobrega com o eletrohouse. O DJ Waldo Squash define bem a música da sua gangue: "som de estremecer os paredões".