Bombacha? Confere. Lenço? Sim. Bota? Duas. Chapéu? Na cabeça. Churrasco, bom chimarrão e lidas campeiras: na ponta do lápis. Há gaita e violão, com ritmo de vaneira, chamamé, xote, milonga e bugio. É a música regional gaúcha, mas quem toca e canta não nasceu no Rio Grande do Sul.
Há décadas artistas e grupos de outros Estados, especialmente originários de Santa Catarina e do Paraná, trabalham com sonoridades relacionadas ao cancioneiro gauchesco — isso sem contar o cenário de bandas de bailão. Costumeiramente, trajam indumentária gaudéria e abordam temas do cotidiano gaúcho.
Não faltam exemplos notórios: Os Nativos (SC), Grupo Minuano (SC), Fogo de Chão (criado por curitibanos que se fixaram em SC), o trabalho da acordeonista catarinense Adriana Gobbi e, entre outros nomes, o Quarteto Coração de Potro (SC), que se apresentou no começo de outubro no Theatro Fuga, em Porto Alegre, com ingressos esgotados.
Reaproveitando elementos da música regional gaúcha, especialmente da tchê music (que, nos anos 2000, foi encabeçado por grupos como Tchê Barbaridade, Tchê Guri e Tchê Garotos), há também a cena da vaneira. Neste contexto, atuam grupos como Talagaço (PR), Sorriso Lindo (SC), Chê Lokedo (SC), Bailaço (SC), Turbinados da Vaneira (SC), Marcação (SC), entre outros.
Embora, às vezes, se misture ao sertanejo e os músicos dispensem a pilcha completa, o estilo tem raiz no fandango gaudério. Do Mato Grosso do Sul, dois projetos se projetaram pela combinação do vanerão com esse ritmo (e o que se convencionou a chamar de “batidão”): Alma Serrana e Grupo Tradição — aquele mesmo que revelou Michel Teló.
Além das colônias de gaúchos espraiadas por rincões além do Mampituba, há uma identificação cultural entre os três estados do Sul que foi propiciada pela Rota dos Tropeiros — caminhos por onde se transportava gado a partir do RS, que levou, ao longo dos séculos, às formações de povoados em diferentes regiões. Consequentemente, isso se reflete na música.
Tanto que uma reportagem de Zero Hora de 2020 atestou que alguns dos mais tradicionais conjuntos de baile do Estado, como Os Monarcas e Os Serranos, concentravam a agenda de shows mais em Santa Catarina e Paraná do que no Rio Grande do Sul.
Em Lages (SC), há o festival Sapecada da Canção Nativa, que já acumula 30 edições. O cantor e violonista Ricardo Bergha, que vem se notabilizando no cenário nativista, identifica-se como uma “cria” desse evento.
O catarinense de 32 anos começou cantando em festivais da escola, entrou para os CTGs, até ser convidado para entrar para o Quarteto Coração de Potro, que integrou por quase 10 anos. No início da pandemia, decidiu sair do grupo para tocar carreira solo, em que acumula dois discos e prepara um terceiro. Para Bergha, é difícil encontrar uma terra tão gaúcha quanto Lages.
— A tradição é a mesma coisa, só o rio que divide — garante. — É uma cidade no caminho das tropas. Então, não tem como a gente não ter tido essa herança gaúcha que vem dos uruguaios e argentinos, essa mistura toda de espanhol, português e indígena.
Quem percebe um gauchismo intenso no interior de Santa Catarina e Paraná é Victor Pedroso, vocalista do Portal Gaúcho — que, apesar do nome, que foi formado em Jaraguá do Sul (SC), em 1999. Natural da também catarinense Maravilha, ele integra o grupo de vaneira há seis anos. Antes integrou projetos como Alma Serrana, Garotos de Ouro e Candieiro.
De acordo com Pedroso, o repertório do Portal Gaúcho abrange boa parte dos ritmos da música regional do RS, como xote, chamamé e bugio. Ele frisa que a banda promove batida mais jovial, usando teclado na gravação e alguns arranjos modernizados, mas assegura a essência do Sul.
Pedroso sublinha que o repertório das apresentações pode mudar conforme o Estado:
— Vejo que o pessoal de Santa Catarina e do Paraná, muitas vezes, cultua mais os clássicos do nativismo que o próprio povo gaúcho. No RS, tocamos uns bailes que nosso repertório é um pouco mais moderno. Quem é de fora é mais saudoso da cultura gaúcha e gosta de preservar as origens.
Gaúcho fora do RS
Com 15 anos de estrada, o grupo Bom de Fole tem como base União da Vitória (PR), mas com alguns integrantes vivendo na vizinha Porto União (SC). O vocalista e guitarrista Francis Alves define que a banda é, exclusivamente, gaúcha. Sem música "meio sertanejada”, como ele descreve, mas com referências em nomes como Serranos e Monarcas e se apresentando pilchado.
Francis observa que União da Vitória é uma cidade que estava no caminho dos tropeiros, portanto, há uma presença massiva não só da música regional gaúcha, mas também da tradição.
— É uma cultura que está muito forte nas vidas individuais de quase todos na banda. Os dois gaiteiros tem uma vida bem campeira. Se temos uma brechinha, vamos fazer uma cavalgada, assar uma costela — relata.
Já um dos nomes mais expressivos em números da música regional gaúcha dos últimos anos é natural de Ponta Grossa (PR). Com sucessos como Camionete Branca, Menino Campeiro e Troféu, Paulinho Mocelin acumula mais de 82 milhões de visualizações no YouTube e mais de 300 mil ouvintes mensais no Spotify.
Aos 45 anos, Mocelin completará uma década de carreira solo em 2025, que culminará na gravação de um DVD no RS. Antes, passou por grupos como Sopro Minuano, Madrugada, Fogo de Chão e Talagaço. Ele salienta que sua escola sempre foi o baile, a “vaneira mais para cima”, que “o sertanejo tomou de nós”, citando referências como Tchê Garotos, Garotos de Ouro e Tchê Barbaridade.
Sua aproximação com a música regional gaúcha começou na infância, especialmente com um disco de José Mendes que enfeitava a estante de casa. Seu pai costumava cantar Picaço Velho, e Mocelin se imaginava vivendo na letra da música. Começou a tocar gaita por influência de Renato Borghetti, que serviu de modelo para ele também deixar o cabelo comprido.
— Eu gostaria de ter nascido no Rio Grande do Sul. Visitei 17 países e quando me perguntam um lugar especial, digo que é o RS — afirma. — A maioria dos amigos que fiz na estrada são do Estado. Me identifico muito. Tem muito a ver com meu modo de vida. A comida, a hospitalidade, principalmente a música.
Sonhos e barreiras
Se é comum grupos e artistas da música regional gaúcha circularem pelos outros Estados do Sul, o oposto começou a ocorrer aos poucos nas últimas décadas. Ou ainda é um sonho, como é para o grupo Bom de Fole.
— Somos uma banda bem regional. Aos poucos estamos aumentando esse leque, fazendo um trabalho de formiguinha. Nosso sonho era ir para o Rio Grande do Sul, tocar em uma Semana Farroupilha — diz Francis.
Os músicos admitem que, às vezes, há relutâncias com nomes de fora do Estado na cena fandangueira. Pedroso aponta que existe uma desconfiança:
— “Bah, são de Santa Catarina, será que vão saber fazer um baile gaúcho?” Mas isso existia mais por a banda não ter trabalhado no RS. De uns cinco ou seis anos para cá, passamos a fazer mais bailes no Estado. Havia um receio. A gente vai e se apresenta, e fica tudo certo.
Já Mocelin ressalta ter enfrentado uma certa resistência quando começou a se destacar. O cantor lembra de comentários como “esse não me representa, não é gaúcho”. Recorda ainda de ter sido comparado, em um blog, a um personagem da música Me Tapo de Nojo, do cantor Lobisomem: “Conheci um vivente esses dias se dizia tradicionalista (...) Avistou meu rebanho de ovelha, parou e me disse/ Tchê bagual, como tá lindo esse teu gado!”.
— O povo que antes criticava agora já não critica mais. Mexo com a pecuária e com cavalo, tenho minha cabanha, minha pista de laço, participo de rodeio. Só o estilo assusta um pouco, mas essa barreira já foi quebrada — garante.
Independentemente do que digam, Mocelin se sente gaúcho. Ele parafraseia uma citação famosa de um tradicional folclorista e pesquisador do Estado:
— É aquela coisa que Paixão Côrtes falou: ser gaúcho não é ter nascido no Estado do RS, mas sim preservar os costumes e levar a tradição, o que é algo que faço muito. Ser gaúcho é um estado de espírito.