Em julho de 2017, a carioca Letícia Novaes, até então conhecida principalmente no Sudeste por integrar o duo Letuce, chacoalhou o cenário musical do Brasil com o lançamento de Letrux em Noite de Climão. Não demorou para a sonoridade dançante do trabalho conquistar a crítica e um público fiel.
Após percorrer o país com as suas canções que gravitam entre a disco music, o indie rock e a MPB, Letícia vem realizando uma série de apresentações para finalizar a turnê do álbum e entrar em estúdio para gravar um segundo disco – no último sábado, registrou o projeto em DVD no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, com casa lotada. Hoje será a vez de os porto-alegrenses se despedirem do climão proposto por Letrux, que desbravou o Brasil nos últimos dois anos, visitando municípios em que o público era formado, nas palavras da artista, por “pessoas às vezes oprimidas por questões de cidade pequena ou de governo”:
– Parecia que tinha chegado um mágico. Sinto muita alegria quando penso em todos os lugares em que a gente tocou e o que causamos. E o que causaram na gente também. Avalio essa trajetória com muita honra, mas com total noção dos tropeços, das loucuras e dos absurdos em que nos metemos. Mas, acima de tudo, a gente construiu uma família, um lugar de catarse.
Política
A partir dessas andanças, Letícia afirma que passou a entender melhor o local onde vive:
– O Brasil não é um país, é um continente. Fiquei muito feliz de poder viajar com a minha arte, com meu trabalho, e conhecer um pouco mais da história e de como o Brasil se forma, se mantém, o que é uma loucura.
Aos 37 anos, Letícia acredita estar do lado certo da história, ao encontrar, por onde passa, um “público formado por pessoas preocupadas com cultura, educação e sanidade mental”.
– Me dá muito orgulho não ter um público acéfalo. Quero pessoas inteligentes gostando de mim e felizmente isso acontece.
Crítica assumida do governo federal, a carioca foi alvo de ataques violentos pelas redes após se posicionar contra Jair Bolsonaro e a favor do ex-presidente Lula no festival Lollapalooza, em São Paulo, no mês de abril. Virou meme e foi chamada de drogada, algo que, segundo ela, é “típico de gente que não pensa e não reflete”. Apesar das ofensas, a cantora diz não se arrepender das manifestações, o que acabou por agregar ainda mais admiradores para o seu trabalho.
O climão político, entretanto, parece estar longe do fim. Diante desse cenário, a cantora prefere permanecer otimista. E a fé de que as coisas poderão melhorar, ao menos para os fãs de Letrux, será encontrada no show desta noite no Opinião, que deve lotar. Se a atmosfera tensa não se dissipar após a apresentação, haverá outra oportunidade no próximo dia 22. Na data, em noite mais intimista, Letícia leva ao Teatro Unisinos o espetáculo Línguas e Poesias. A proposta é, ao lado do namorado, Thiago Vivas (piano), e de Lourenço Vasconcellos (vibrafone), apresentar músicas de outros artistas que marcaram a vida de Letícia em meio à leitura de poesias de autores como Sylvia Plath, Carlos Drummond de Andrade, Ana Cristina Cesar e Hilda Hilst.
Ouça e leia na íntegra a entrevista de Letícia Novaes, a Letrux, para GaúchaZH:
Como é olhar para trás e pensar nestes mais de dois anos de Letrux em Noite de Climão?
Acho que sou uma pessoa da memória. Adoro postar coisas da minha infância, coisas que já escrevi. Não sou nostálgica, adoro a minha vida do jeito que é agora. Claro, colágeno e coisas do passado poderiam estar presentes, mas gosto do que acontece agora. Eu miro para o futuro. Mas acho que observar a trajetória... isso é coisa de quem faz análise também, você chegou neste lugar por causa de uma história, por causa de uma trajetória. É claro que penso nesses dois anos anos e três meses. É claro que observo, penso, reflito, questiono, mas não de uma maneira apegada. Foi o que tinha que ser, lutas e glórias. Tivemos dias de luta, tivemos dias de luxo. Acho que seguir é a coisa mais importante, mas não é um seguir de uma maneira cega. Observar o passado e a trajetória é superimportante para você mirar onde está indo. Avalio essa trajetória com muita honra, muito orgulho de ter feito parte disso tudo, mas com total noção dos tropeços, das loucuras, dos absurdos em que a gente se meteu também. A gente construiu uma família, um lugar de catarse, de levar esse show para cidade pequena, para pessoas às vezes oprimidas por questões de cidade pequena ou de governo. A gente chegava e parecia que tinha chegado um mágico na cidade. Sinto muita alegria quando penso em todos os lugares em que a gente tocou e o que a gente causou. E que causaram na gente também, porque é uma troca, me dá muita alegria.
Como foi percorrer as cinco regiões do país com a turnê do disco?
Não conhecia tanto (do país), conhecia o básico. Fui pela primeira vez para o Norte. Nunca tinha ido para Belém, nunca tinha ido para Manaus. A gente sempre tenta, por mais que seja corrido, tirar uma horinha e conhecer o encontro do rio Negro com o Solimões, que é muito importante. E são esses momentos que inspiram a compor, a fazer outras músicas. Também não tinha ido para várias cidadezinhas do Nordeste, nem para o Centro-Oeste, só para Brasília. Só tinha ido para as grandes capitais. É uma coisa louca. Quando você conhece o Brasil, parece que você entende mais do Brasil. Você vê as diferenças, os tipos de criação, de manias, de folclores, de religiões, e você vai entendendo o quão continental é o Brasil. Não é um o país, é um continente. Eu fiquei muito feliz de poder viajar com a minha arte, com meu trabalho, e conhecer um pouco mais da história, de como o Brasil se forma, como se mantém, o que é uma grande loucura. E a gente está passando por um momento supercomplicado. Sou feliz de saber que meu público está do lado certo da história. São pessoas preocupadas com cultura, com educação, com sanidade mental. Isso me dá muito orgulho, ter um público preocupado, não um público acéfalo. Quero pessoas inteligentes gostando de mim e, felizmente, isso acontece. Fico muito feliz.
Como você lida com as críticas e ataques, sobretudo na internet?
É aquela velha história, até Jesus não agradou a todos. Eu sofri bullying no colégio, então já sou uma pessoa meio cascuda. Por saber que o Brasil é tão continental, não espero de jeito nenhum agradar a todos. Fiquei mais popular, mas minha arte não é exatamente popularzona, do povão. Não me encaixo tanto. Tenho umas preferências mais estranhas, esquisitas, coisas que gosto, minhas referências, enfim. Sei lá, me protejo muito, sou uma pessoa espiritualizada. É claro que tem dia que a gente fica chateado, sem dúvida, sou humana. Tem dia que falo: "Ai, que raiva disso tudo". Mas sou uma pessoa que faz análise, então sei me cuidar, porque estou muito exposta. Por estar muito exposta, tenho um mundo da introspecção, dos segredos, dos mistérios e do autocuidado. Acho que me protejo dessa maneira, o que mais me ajuda é fazer o meu reiki, ir ao centro espírita, ir na análise, isso tudo me ajuda muito nesse processo.
Os ataques após o Lollapalooza foram os mais difíceis de lidar (no festival, Letrux se posicionou contra Jair Bolsonaro e a favor do ex-presidente Lula)?
Na época em que comecei, nossa maior ameaça era o Michel Temer. De alguma maneira, todo mundo que ia no meu show já sabia das minhas posições políticas. Como o Lollapalooza foi televisionado, muita gente começou a descobrir: "Olha, essa louca, essa crackuda". Começaram a fazer uns comentários ultrapodres, ridículos, típicos de gente que não pensa, que não reflete. Daí virei meme de direita, estava em uns vídeos que as páginas de direita compartilhavam. Mas não me arrependo de nada, não teria feito diferente. Acho uma catarse maravilhosa. Muita gente veio falar que me conheceu no Lollapalooza. É um dia da caça, um dia do caçador. De alguma maneira foi positivo.
A Letrux é muito diferente da Letícia?
Estudei teatro e gosto de encarnar personagem. É claro que empresto coisas da minha personalidade, ou coisas da minha mãe, das minhas amigas, das mulheres que admiro. Não sou eu 100% porque não é tão legal ser você 100% no palco. Admiro quem diz: "Sou eu 100% na vida real e no palco". Mas acho que o palco, por eu ter estudado teatro, tem mais possibilidades, posso brincar, posso exagerar. E, se eu for ser Letrux dentro da minha casa, meu namorado vai enlouquecer, vai falar: "Cara, quem você está achando que é". Porque, querendo ou não, assumo um lugar ali de musa, de lânguida, tem um erotismo, uma coisa exagerada. Se eu ficar assim em casa, ele vai falar: "Gente, o que é isso? Um personagem dentro de casa". A vida real às vezes precisa de mais pragmatismo, de menos afetação. O palco é um lugar em que é divertido se afetar, brincar. É bom também proteger algo de mim, Letícia, e trazer personas que criei ao longo desses anos para um lugar que é tão permissivo quanto o palco.
Com uma agenda lotada nesta finaleira da turnê, você se sente esgotada?
Acho que no ano passado, assim que começou a ficar mais intenso, foi quando fiquei mais cansada. Não estava tendo muita noção, então perdi a voz. Tive faringite, foi superconfuso, mas consegui ir para a fono. E consegui entender que minha vida ia mudar. Acho que fiquei muito mais saudável. Me cuido, é uma rotina de atleta quase. Estou bebendo muito menos. Nunca bebi para fazer show, tenho muito medo de ficar rouca, de esquecer a letra. Sou uma pessoa altamente sóbria no palco e amo isso. Mas depois do show sempre bebi um pouco, até para relaxar, porque você sai do show alucinada. Só que daí comecei a entender que não iria dar, que minha vida teria que ser de regras, de cuidados, a não ser que eu quisesse ter várias faringites. Sou muito capricorniana, quero fazer o meu melhor. Comecei a fazer exercício físico, que eu já fazia, mas estava parada. No início, tive mais momentos de fadiga. Agora parece que abracei essa rotina e essa dinâmica. Já tenho o meu esquema de tornar o avião melhor, de dormir no hotel, daí cola a fitinha no ar-condicionado... Criei meus rituais. No início fiquei mais cansada. Mas agora já abracei esse lugar e estou me entendendo com ele.
Você tinha noção do potencial do disco e de onde ele poderia chegar?
Fiz um disco para me entender, para ser honesta com meus sentimentos. Música é um lugar que eu tenho, mas que agora ficou mais sério. Sempre foi, mas, de alguma maneira, entendi todo um novo alcance. Fiz um disco sem pretensões. Para que as pessoas gostassem, mas era uma coisa minha, para eu me resolver, e aconteceu essa avalanche. Não esperava. Queria que as pessoas gostassem, mas eu não esperava. Sou muito honrada disso tudo estar acontecendo.
Além do show desta sexta-feira no Opinião, você volta a Porto Alegre no dia 22 com o espetáculo Línguas e Poesias, no Teatro Unisinos. Como é essa apresentação?
Tava rolando Letrux em Noite de Climão e comecei a ter saudades de fazer outros shows, outras loucurinhas. Meu namorado (Thiago Vivas) toca piano. A gente mora junto já há um tempo e a nossa rotina é muito ele estudando piano, Beethoven, Bach, e eu ali brincando com as poesias, com os livros. E o baterista de Letrux em Noite de Climão (Lourenço Vasconcellos) toca vibrafone também. Então fica tudo em casa. Não é um show autoral, é um show em que canto músicas da minha vida, em várias línguas, em francês, italiano, inglês, espanhol. É um show em que leio poesias que amo, brasileiras e gringas. Amo muito fazer. É outro lugar, outra dinâmica.
Entram as tuas poesias nesta apresentação (Letícia é autora do livro Zaralha - Abri Minha Pasta, de 2015)?
Até leio uma ou outra coisa minha, mas é menos. A maioria dos poemas são da Sylvia Plath, do Drummond, da Ana Cristina Cesar, da Hilda Hilst. É bem variado.
Você tem postado músicas do Letuce (duo que manteve com o ex-namorado Lucas Vasconcellos de 2007 a 2016) no seu Instagram. Haverá músicas do grupo no show de Porto Alegre?
Não, é que o último show no Rio de Janeiro será no Circo Voador (no dia 18 de outubro), e o Lucas vai participar. A gente vai tocar músicas de Letuce. Em Porto Alegre vai ser apenar Letrux em Noite de Climão.
Como está o processo de concepção do novo disco?
Ele está sendo supergestado. Já foi composto. Faltam poucas músicas para finalizar o processo de composição. A banda já está se encontrando, a gente grava em novembro. É um outro estado. Letrux em Noite de Climão era um estado anímico da minha vida. Claro que as coisas dialogam e vão estar interligadas, porque eu sou a mesma pessoa. Mudei, mas é a minha essência, né? Continuo intrigada com questões que poderiam ser banais, mas são questões comuns a todo mundo. Do cotidiano, da paixão, da emoção, da dor, da alegria. E sempre com bom humor, porque, se não fosse o bom humor, não sei o que seria da minha vida.
Quais são as lembranças das passagens por Porto Alegre?
Eu amo. Nosso primeiro show aí foi inesquecível, no Agulha. Foram duas noites inesquecíveis, com Alice Castiel, que é uma produtora local. Ela criou todo um lugar. A gente amou fazer essa duplinha de shows, foi muito lindo. Depois a gente voltou para o Opinião, que também foi o máximo, e vamos voltar agora, tem um palco maravilhoso, um pé direito supergrande. A gente é sempre muito bem recebido, come bem quando vai aí. O povo ama a gente, é um carinho absurdo. Eu sei que o Sul é um lugar em que a maioria acabou votando naquela praga (o presidente Jair Bolsonaro), mas é impressionante ver a resistência das pessoas no nosso show. Às vezes, são pessoas cujas famílias inteiras votaram no Bolsonaro ou tem um trabalho muito careta. Elas vão no nosso show para extravasar. Nossa, é muito bonito ver essa troca, fico feliz de escolherem nosso show para esse lugar de catarse.
Você se posiciona bastante contra o atual governo. Isso é cansativo?
Tá muito complicado, a coisa tá feia. Cada dia é uma bomba, cada dia é um horror. Mas quero ter fé, quero ter otimismo, à la Gilberto Gil, naquela conversa com a Xuxa ("Eu acho que o tempo vai para frente. Volta um pouquinho, dá esses passos para trás, mas a seta do tempo é em direção ao futuro e ao aperfeiçoamento", afirmou o cantor no seu programa Amigos, Sons e Palavras, do Canal Brasil). Acho que essas coisas são cíclicas: os horrores e as barbáries do mundo. Mas realmente é inacreditável. Tem dia em que acordo e falo: "Não acredito. Que vergonha, é inacreditável". Mas quero ter fé, quero ter otimismo.