Com uma pegada que cruza um espírito de Bob Dylan com o repente nordestino, a música Reis do Agronegócio, de Chico César, é talvez a mais explícita canção de protesto feita no Brasil desde Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (Geraldo Vandré, 1968) e Apesar de Você (Chico Buarque, 1970).
Não se tornará um hino, como aquelas, pois os tempos são outros e porque é muito mais densa e política. Libelo contra o uso de agrotóxicos nos alimentos e a destruição de florestas para a criação de gado, ataca diretamente a bancada ruralista no Congresso, formada por "criminosos e nefastos", e defende os pequenos produtores. "Pobre tem é que comer com venenos", diz, ao fim da música, acrescentando: "Eu me alegraria se vocês morressem! Abaixo o capitalismo". Ao que o público responde: "Fora Temer! Fora Temer!".
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Estou falando de um trecho do DVD Estado de Poesia – Ao Vivo, gravado um ano atrás no Teatro Boa Vista, de Recife, ao fim da temporada de promoção do álbum de inéditas Estado de Poesia, lançado por Chico César em 2015, oito anos depois do anterior. Entre um e outro, ele deixou para trás 25 anos de vida em São Paulo, retornando a sua terra para ser presidente da Fundação Cultural de João Pessoa (2009 – 2010) e secretário de Estado da Cultura da Paraíba (2011 – 2014).
Focado nessas tarefas, a música ficou mais ou menos de lado. Mais ou menos, pois o disco da volta trouxe um jorro de criatividade, sendo destacado por vários críticos entre os melhores do ano. O DVD tem ainda mais potência: além das canções daquele álbum, inclui citações de alguns clássicos da música brasileira e uma inédita, Autopistas.
Pop, elétrica, também inspirada em Dylan, Autopistas é uma canção de estrada e encontro/desencontro, um dos temas prediletos do compositor, cujos versos se alimentam cada vez mais de fina elaboração poética. Para mim, Chico é o mais completo cantautor da geração surgida nos anos 1990. O repertório de Estado de Poesia comprova isso com grande maturidade. O disco todo tem alto nível, mas são exemplos da potência artística do compositor músicas, digamos, românticas, como Atravessa-me (a letra fala em uma mulher "com cheiro de banho no cabelo ainda molhado"), ao lado de músicas comportamentais, como o frevo Alberto (dedicada a Santos Dumont e à questão gay numa sociedade repressiva) e políticas (como o reggae Negão, sobre o racismo). Nas canções mais lentas, as melodias têm ares de folclore.
Construída à semelhança dos sambas de Adoniran Barbosa, No Sumaré fala sobre as praças "higienizadas" das cidades após a expulsão dos moradores de rua: "Hoje só resta a praça vazia/ Onde na noite fria/ O cachorro do rico faz o seu pipi". Com reggae, xote, frevo, samba, forró, embalados por convidados como o cantor baiano Lazzo Matumbi, uma banda paraibana de alta combustão, a percussão colorida de Simone Sou, o acordeão do moldavo Oleg Fateev e o desempenho energético de Chico, o show eletriza o público. Entre os clássicos mencionados acima, como citações dentro das músicas de Chico, aparecem Zazueira (Ben Jor), Besta é Tu (Novos Baianos), Juazeiro (Luiz Gonzaga) e a própria Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores, no mesmo bloco final ao lado de Mama África, primeiro sucesso do compositor, em 1995. Os extras do DVD incluem a parte do show só com ele ao violão, bastidores e o clipe de Autopistas.
Lançado simultaneamente, o CD tem três faixas a menos.
ESTADO DE POESIA - AO VIVO
De Chico CésarUrban Jungle/ Canal Brasil/ Deck Disc, DVD em média R$ 38, CD em média R$ 25. Disponível nas plataformas digitais.
LIVE SESSIONS II
De Tony Babalu
Em ação desde os anos 1970, como integrante de uma das bandas nacionais mais celebradas, o Made in Brazil, o guitarrista Tony Babalu ainda não perdeu o pique. Pelo contrário, renovou-se, como mostrou em 2014 no primeiro álbum solo, Live Sessions in Mosh, recebido com amplos elogios pela crítica. Para este novo trabalho, ele voltou ao estúdio Mosh, em São Paulo, repetindo o mesmo processo de gravação: sua velha Fender Stratocaster, os teclados de Adriano Augusto, o baixo de Leandro Gusman e a bateria de Percio Sapia tocando ao vivo com captação analógica, sem overdubs ou emendas.
Com duração média de seis minutos, as seis composições abrem o leque da sabedoria de Babalu, começando com um rock'n'roll pegador, vindo logo um blues mais lento, dois baladões, um mambo com ar de Santana e um hard-funk pra fechar a história em alto estilo. Toca muito, o cara.
Amellis Records/ Tratore, CD R$ 24 em bit.ly/popbabalu. Também nas plataformas digitais.
DOIS EM PESSOA - Volume II
De Renato Motha e Patrícia Lobato
Treze anos depois do primeiro volume, o duo mineiro dá continuação, em álbum duplo, ao projeto de musicar a obra de Fernando Pessoa. Um dos discos chama-se Canções e o outro, Sambas. Em ação desde 1992, Renato Motha tem seis álbuns solo e oito em parceria com Patrícia Lobato. Praticamente todos têm uma característica contemplativa, eu diria zen – talvez seja essa uma das razões de sua aceitação no Japão. O par é superintegrado, mas o ouvinte precisa estar bem atento para usufruir o que eles oferecem, uma terceira via entre a música e a poesia. A apropriação dos versos de Pessoa muitas vezes não é literal, sendo usados trechos e até colagens.
Entre aos poemas estão os conhecidíssimos Autopsicografia e O Guardador de Rebanhos naquele trecho que recebe aqui o título de O Menino Jesus Verdadeiro. Ao todo, são 26 faixas, fechando o disco uma composição de Motha em homenagem ao mestre, Samba Para Pessoa.
Independente, R$ 49 em www.renatomothaepatricialobato.com
CANTO DA AREIA
De Beba Zanettini
Uma cantora alemã e outra tcheca estão entre as atrações especiais do segundo disco do ótimo compositor, arranjador e tecladista Beba Zanettini, ex-integrante do grupo paulista Aquilo Del Nisso, de carreira solo ascendente. Embora a maioria de suas composições tenha letras, é marcante nelas uma descendência instrumental, o que dá ao disco uma particularidade difícil de encontrar em trabalhos de autores/cantores – a voz de Beba não se ouve em nenhuma das faixas, cantadas quase sempre por mulheres, como as paulistas Keila Abeid, Desa Pauline, Tânia Grinberg e Mirna Rolim, todas surpreendentes.
Canto de Areia é muito bom de ouvir também pela variedade de ritmos, melodias e temas. A alemã Eva Jagun está em duas canções, em alemão e em inglês, ambas com letras dela. A tcheca Iva Bittová brilha em um scat singing. A argentina Liliana Morales mostra-se em espanhol. Beba não precisa provar mais nada.
Tratore, CD R$ 26 em média. Disponível nas plataformas digitais.