Já ia alta a madrugada de sábado para domingo quando um bater incessante de bumbo ressoou pelo Balneário do Chico, em Ijuí. De repente, círculos de fogo brotaram dos dois lados do palco armado nas margens do Rio Ijuí, e uma multidão gritou em saudação. Olhei para o meu copo: era energético mesmo aquilo que me deram? Seriam, talvez, os efeitos da privação de sono ou o abuso de enroladinhos de salsicha? O texto a seguir narra as horas que eu e o fotógrafo Diogo Zanatta passamos na sétima edição do Acid Rock, festival de música independente realizado neste fim semana no Noroeste do Estado.
Ato I – Chato de galochas
13h – Sábado. Chegada ao Balneário do Chico, região do Chorão, em Ijuí. Coisa de 15 minutos do centro da cidade. A previsão é de chuva torrencial, mas a área do acampamento está lotada. Ninguém parece temer a água que, dizem os especialistas, irá despencar a qualquer momento. Ninguém menos eu, o único ali a cozinhar de calça jeans, camiseta preta e um par de galochas. Não há sol, mas o mormaço é suficiente para, em 30 minutos, ensopar tudo o que estou vestindo. Essa sensação irá me acompanhar por muito tempo. Surpresa: meu celular decide que sua única função, a partir daquele momento, será a de mostrar as horas.
13h45 – Apagão. Sem energia elétrica, não é possível vender tíquetes. Sem tíquetes, não é possível comprar cerveja. Sem cerveja, sinto que teremos problemas.
14h – Me sinto sendo cozinhado no bafo. Numa decisão da qual poderei ou não me arrepender depois, tiro a camiseta. Sentado com Robson Duarte, 31 anos, de Panambi, reforço o protetor solar. Ele veio com outros quatro amigos, todos já pra lá de Bagdá (entraram assim que o festival abriu os portões, às 9h). Enquanto vigia o churrasco, Robson diz que não perde um Acid Rock. O que o atrai? Ver bandas que não veria em sua cidade. Mas também gosta de mato e de caipirinha de limão siciliano.
14h15 – Um uivo de comemoração indica que a luz voltou. Decido me hidratar, então.
14h25 – A cineasta de Passo Fundo Dhara Luna e um amigo estão documentando o festival a pedido da organização. Eles vestem uma camiseta com a enigmática inscrição "Who the fuck is Comodoro?". Ela me conta que Comodoro é uma espécie de celebridade do Acid Rock Festival. Conheço o rapaz em seguida. Ela tem razão.
15h – Converso com um dos organizadores do Acid Rock, Renan Mattos. Ele me conta alguns dos perrengues enfrentados pelo festival. Em uma edição, tiveram que erguer uma cerca para impedir a entrada de gado na área do evento – barreira solenemente ignorada pelos bovinos. Em outra, a chuva foi tão forte que o palco voou. Mas seguem em frente, no esquema mais independente possível, investindo o dinheiro arrecadado em uma edição para pagar a seguinte. A ideia, agora, é ir atrás de verba pública para continuar crescendo e fomentando a cena da região Noroeste.
15h30 – Um sujeito vestindo roupa de bailarina anuncia um espetáculo. Ele é Margarina Bailarina e manja dos malabarismos. No último número, utiliza tochas. Torço para que ele não chamusque barba e cabelo. Um garoto ao meu lado torce pelo contrário. Margarina sai ileso. Ele realmente entende do riscado.
16h – O palco é finalmente aberto com a banda Irmão Victor, de Passo Fundo. Rock psicodélico, trilha perfeita para abrir um festival como o Acid Rock Festival. Quem não está na frente ou em cima do palco está atrás, se refrescando no Rio Ijuí. Chego a lacrimejar ao pensar na possibilidade de tirar a roupa e dar só um mergulhinho. Minha pele parece um papel pega-mosca. Por falar nisso, hora de reforçar o repelente.
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16h30 – Chuva! Rá! Chuva! Sim! Finalmente! Finalmente justifico o catzo dessas galochas. Hoje não, Brasil! Hoje não!
16h37 – Hoje sim. Parou a chuva.
17h – Decido me instalar no galpão que abriga a praça de alimentação. É, de longe, o melhor lugar de onde já assisti a shows: com lugares para sentar, de frente para o palco e perto do bar. Ao meu lado, pregado numa árvore, um quadro relê a capa do disco The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, com um unicórnio bebendo de canudinho o icônico prisma onde se lê Pig Floyd. Quer dizer, o desenho mostra um equino fantástico enquanto a inscrição fala em porco. Fico confuso e fascinado. Vou me hidratar mais.
17h07 – Tenho certeza que, se os cientistas da Nasa se dedicassem, comprovariam que enroladinhos de salsicha podem salvar vidas. A minha, pelo menos. Ainda mais por 3 pilas.
17h30 – Só percebo que Thiago Ramil subiu no palco quando está na metade da primeira música. Percebo também que essa prática é corriqueira no Acid Rock: ninguém anuncia nada, os shows começam e é isso. A primeira metade da performance levanta o público, que se dispersa na segunda parte. Essa parece ser outra característica do festival, a circulação constante de pessoas, sempre em busca de algo para fazer em outro lugar.
19h – Sinto que exalo o cheiro de um curtume. Digo para o Diogo que todos sairiam ganhando se voltássemos para o hotel para um banho e roupas limpas. Ele sabiamente não se opõe.
Ato II – Lokura plena
21h – O taxi que nos leva de volta ao festival tem adesivos "sorria, você está sendo filmado" espalhados na parte interna. Decido que é melhor não perguntar a respeito.
21h15 – Adivinha quem deixou as galochas no hotel porque acreditou na previsão de tempo nublado sem chuva, e aí começou a chover forte e os tênis já estão tapados de barro?
21h30 – Cachorro-quente de salsicha picada não é tão ruim quando se está com fome. As amigas Camila e Bárbara, de Passo Fundo, devoram um cada uma. Vieram ver a Bombo Larai e os argentinos do El Sonidero. Estão acampadas com os namorados, que dormem o sono dos justos depois do dia de folia. No início da madrugada, encontrarei Camila fazendo o mesmo no gramado e Bárbara em frente ao palco, coberta de lama.
22h – Com a desistência dos paulistas da banda Bike, que encerrariam o festival, o cronograma foi esticado. Para entreter o público, Renan Queiroz, vocalista da banda Dr. Hank, comanda a rádio oficial do Acid. Está nessa desde a manhã e não sabe quando largará. Espelhando o evento, sua playlist é eclética – vai da banda Merda, do Espírito Santo, ao rapper americano 2Pac. Entre uma música e outra, canta o cardápio do almoço, dá recados e procura os donos de objetos perdidos pelo campo.
22h30 – A Musa Híbrida começa a dar sua aula de interpretação de palco. O produtor Vini Albernaz conduz o espetáculo que é colorido pela guitarra de Alércio. Cuqui, a vocalista, maneja um baixo quase do seu tamanho e canta na ponta dos pés, mas sua performance é gigantesca. Vejo gente chorando, gente se abraçando, gente dançando, gente boquiaberta, gente fazendo isso tudo junto. Quantas bandas conseguem essa conexão com seu tempo e seu público de maneira tão natural, tão espontânea?
Meia-noite – Os pernambucanos da Tagore detonam um rock 'n' roll vibrante e algo psicodélico. Tocam alto e com vigor. Enfio a mão no bolso e sinto a última fichinha de enroladinho de salsicha. Fico ainda mais feliz.
0h40 – Como o último enroladinho de salsicha enquanto acompanho um pequeno sapo que cruza o galpão. Ele não tem pressa e faz pausas, como que acompanhando a levada da banda. Algumas pessoas sorriem, outras ignoram. Ninguém se preocupa. Ele some na escuridão do mato. Minhas pálpebras pesam uma tonelada. Vou pegar um energético.
1h30 – Um bumbo ressoa no palco. Nos cantos, palhas de aço são incendiadas e giradas, formando círculos incandescentes. É a deixa para a entrada da Bombo Larai, o show mais divertido do sábado. O público canta cada uma das músicas mesmo o disco tendo sido lançado há apenas dois meses. O Bombo está tão à vontade com a plateia que chega a engatar um medley com a infame Tic Tic Tac, da banda Carrapicho, e é ovacionada. Estou no meio da multidão e já não respondo pelos meus atos.
3h30 – A Bombo deixou o palco há uma hora, e os argentinos da El Sonidero ainda tentam ajustar seus instrumentos. Quem não foi dormir nas barracas está dormindo pelo gramado, nos bancos ou tentando se manter acordado de algum jeito. Faço polichinelos discretos e conto até 10 em japonês. É muita vontade de ver o último show ou ver o dia raiar – o que ocorrer primeiro.
3h40 – Finalmente a finaleira. El Sonidero é uma grande banda, que executa seu rock com alegria e busca o tempo todo se conectar com o público. Há pitadas de reggaeton e de cumbia.
4h – No táxi que diz para sorrir porque está filmando. Meus pés gritam. Minhas costas ardem. Minha cabeça lateja. Meus olhos lacrimejam. Não tenho forças sequer para bocejar. Que grande jornada. E amanhã tem mais.
Ato III – Sauna ao ar livre (o domingo)
14h – A domingueira começa com ritmos nordestinos. Formada por integrantes da Tagore, a dupla Caramuru & Julião evocou clássicos do xote, do xaxado e do forró para esquentar a tarde cuja sensação térmica já é alta. Com as panturrilhas esfoladas pelas galochas, decidi ficar quieto – o que me rendeu uma boa sauna ao ar livre. Clima era de piquenique, com toalhas espalhadas pelo gramado, gente tomando banho de rio, batendo uma bolinha ou simplesmente se recuperando da noite anterior.
14h50 – Noto rodelas grossas de água no meu bloquinho. É suor que, sem eu sentir, escorre da minha testa e pinga enquanto escrevo. Faço como Edward Norton em Clube da Luta e tento me teletransportar para uma caverna de gelo. É inútil.
15h – Caro Antônio é um quarteto de Passo Fundo formado por Marina Iarcheski, Lucas Schütz, Natanael Koplin e Giovani Lk que me faz valer cada gota de suor desprendida nesta tarde. Eles têm a audácia de substituir a guitarra por um vibrafone e tudo o que eu disser na sequência será mera especulação. Minha única sugestão: ouçam. Mais de uma vez.
15h30 – Enquanto ainda procuro meu queixo após o show da Caro Antônio, uma oficina de bambolês tem início. Acho lindo, mas reconheço meus limites (tenho a desenvoltura abdominal de um mourão de concreto). Decido seguir o fluxo e levantar metaforicamente meu acampamento. Obrigado por tudo, Acid Rock Festival. Espero te ver no ano que vem.