Por Tailor Diniz
Escritor e roteirista, autor, entre outros, de “Só os Diamantes São Eternos” (2020)
Em 1935, o escritor Rafael Guimaraens repete a fórmula de livros anteriores, que é mesclar pesquisa histórica com ferramentas da literatura policial. Sua opção fica clara na escolha do personagem narrador, o jornalista investigativo Paulo Koetz, de um tempo em que a editoria policial dos jornais tinha uma aura mítica, com prerrogativas até de rivalizar com a própria polícia. O repórter tanto podia competir com o policial no mesmo espaço como manter com ele relações pouco éticas e de caráter duvidoso.
Não seria despropósito, porém, dizer de início que o real personagem de 1935 é o próprio ano citado no título. Sua construção se dá pela cuidadosa apresentação dos fatos históricos nele ocorridos, juntamente com os respectivos cenários onde se desenvolveram.
A narrativa começa com uma visita de Koetz a uma adolescente esfaqueada pelo marido, internada na Santa Casa de Misericórdia, um ponto compulsório em qualquer texto de reconstituição histórica da Porto Alegre do século passado.
Como pano de fundo, ou elemento construtivo do ano-personagem, estão os preparativos para a exposição comemorativa ao centenário farroupilha. Em conversas de jornalistas colegas de Koetz, fica-se sabendo que o propósito das autoridades é aproveitar a data para reafirmar, de forma contundente, uma identidade de heróis aos que perderam a guerra.
Outro movimento de relevância marca o ano de 1935. Este vem de parte dos comunistas, empenhados em reunir a militância em uma ação organizada, que tem como peça chave o escritor Dyonélio Machado, encarregado de fundar no Estado a Aliança Nacional Libertadora (ANL).
Na carona desse fato, surgem dois casos reais de assassinato, que vão, com alguma continuidade, permitir ao jovem Koetz exercitar sua veia detetivesca. São as mortes de dois comunistas, os advogados Waldomiro Rippol e Apparício Cora.
Militante da ANL, Rippol se exila no Uruguai junto a outros partidários, depois de o general Flores da Cunha, governador do Estado, flagrá-lo conspirando contra ele. Um tempo depois, em atenção a uma anistia concedida pelo próprio general, voltam ao Brasil. Menos Rippol, que prefere se posicionar em Rivera para articular um movimento de desestabilização do governo.
É assassinado, e todos os indícios são de que se tratou de uma execução orquestrada por Flores da Cunha. Não contente com o encerramento do caso, Aparício Cora, correligionário de Rippol, retoma a investigação por conta própria, com a ajuda de Koetz. Morre meses depois. A polícia define o caso como suicídio, mas não parece haver dúvidas de que foi outra execução.
Mesmo sendo o narrador personagem, e um jornalista investigativo, Koetz é quase um espectador do transcurso dos fatos reais. Seu trunfo é a solução do Crime do Sapato Vermelho, que o leva ao submundo de uma Porto Alegre socialmente dividida: de um lado, a ostentação, que tem como marca cafés, casas de negócios e o footing da Rua da Praia, e, de outro, a miséria no entorno do Cais do Porto e de arrabaldes mais distantes do centro.
Não falta ao romance a figura da mulher fatal, representada por uma dançarina que se apresenta na cidade, por quem Koetz se apaixona. Trata-se da falsa francesinha Juliette, que, a se considerar o clima de pré-guerra da época, pode levar o leitor a imaginar uma espécie de Mata Hari na província.
Embora sem poderes para mudar alguns fatos, é pelo olhar acurado do jornalista que o leitor circula por locais tradicionais de Porto Alegre, suas casas noturnas, lupanares, teatros de revista, cinemas e cafés – lugares que desenham um retrato um tanto traiçoeiro da cidade. Esconde nas suas entranhas todo o tipo de crime, do proxenetismo ao tráfico de mulheres europeias obrigadas a se prostituir aqui. No final, porém, 1935 relata também uma insuspeita história de amor.