A jornalista espanhola Pilar del Río conheceu o escritor José Saramago (1922-2010) em Lisboa em 1986, após ter lido todos os seus livros publicados em espanhol. O escritor guiou-a em um passeio pela capital portuguesa aos lugares que havia retratado em seu romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de 1984. Ele tinha 64 anos, ela, 36, e o primeiro contato levou a uma aproximação que resultaria em união apenas dois anos depois, já com ela morando em Portugal. No início dos anos 1990, o casal se transferiria para Lanzarote, na Espanha, onde Saramago morou com a companheira até o fim.
Saramago dedicou a Pilar todos os livros que escreveu após conhecê-la. E Pilar também se dedica aos livros de Saramago. Em vida do autor, foi a tradutora da obra para o espanhol. E como presidente da Fundação que leva o nome de Saramago, ela tem sido a guardiã do legado do único Nobel de Literatura português.
É cumprindo este papel que Pilar estará em Porto Alegre nesta sexta (5) e no sábado (6). Primeiro, ela participa às 19h30min, no Teatro do Prédio 40 da PUCRS (Avenida Ipiranga, 6.681, em Porto Alegre), de um debate com o escritor português José Luís Peixoto, que está lançando seu novo romance, Autobiografia, uma narrativa em que um jovem autor iniciante cruza o caminho do já consagrado escritor José Saramago, em 1997.
No sábado, ela estará na solenidade de abertura da exposição Saramago: Os Pontos e a Vista, no Farol Santander em que um extenso material gravado com o escritor passeia por aspectos de sua vida e obra. Por e-mail, Pilar concedeu a seguinte entrevista a Zero Hora:
A senhora estará em Porto Alegre para o lançamento do livro de José Luís Peixoto, que versa sobre a relação do autor com Saramago, e haverá também uma exposição sobre o autor. A cidade teve uma relação antiga com Saramago. Que memórias a senhora mantém da relação dele (e da sua) com Porto Alegre?
Existia uma relação consolidada entre Porto Alegre e José Saramago, de lugares e amigos, que espero poder rever. Saramago visitou a Universidade (UFRGS), andou pela cidade e arredores, manteve correspondência com alguns professores. Por isso, quando o Marcello Dantas falou da exposição em Porto Alegre não pude estar mais feliz: "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam", escreveu José n'A Viagem do Elefante. Levamos isso à risca.
O livro de Peixoto fala sobre a relação de um jovem autor com um escritor já celebrado, Saramago. Ao longo dos anos, a senhora provavelmente testemunhou muitos episódios de aproximação de autores estreantes ao escritor famoso que Saramago havia se tornado. Qual foi a tônica dessas aproximações? Como Saramago se relacionava com os jovens?
A relação do escritor que José Saramago era com os jovens autores era tão boa que posso resumi-la em dois pontos: a) José Saramago lia o que os jovens escreviam; b) Cedeu aquilo que temos de mais íntimo, o nome, para que aqueles que estão começando sejam reconhecidos e estimulados. O Prêmio José Saramago, que não só em termos de prestígio, mas financeiro, é bastante relevante, está destinado a escritores e escritoras de até 35 anos. Não acho que seja necessário dizer mais nada. Ou talvez só acrescentar que os escritores que receberam esse galardão hoje são valores consolidados reconhecidos internacionalmente.
Qual foi seu primeiro pensamento ao saber do projeto de livro de Peixoto? Já nessa ocasião a senhora enxergou o paralelo com O Ano da Morte de Ricardo Reis, que a senhora comenta em uma nota que acompanha o livro?
Obviamente, pensei n'O Ano da Morte de Ricardo Reis, sabendo que cada autor escreve o seu livro e que, por isso, esse seria distinto. Senti vertigem por Peixoto, pensei que nem ele tinha ideia de onde estava se metendo... Porque uma coisa é a ficção pura e a outra é a ficção onde entra um personagem real. Sei que José Saramago teve dores de cabeça com Ricardo Reis e Pessoa, também com Jesus Cristo do Evangelho, porque a realidade se empenha em contradizer a ficção, mas aqueles que são grandes sabem como resolver essa questão. E Peixoto demonstrou que sabe e que pode fazê-lo.
A senhora e Saramago compartilharam ideais de esquerda. Como vê a atual ascensão da direita na política internacional, inclusive no Brasil?
Com preocupação. Os valores conquistados no mundo, os direitos dos trabalhadores e os direitos sociais, o direito à saúde e à educação, o respeito a todas as culturas, não podem ser perdidos porque aqueles que aparentemente agora estão ganhando o jogo assim o querem. São xenófobos, misóginos, que não entendem o que é a diversidade, que preferem que existam multidões que só sabem insultar a que sejamos cidadãos que pensem e se expressem livremente. E é por isso que atacam as universidades, as escolas e a cultura. E fazem tudo isso prometendo um paraíso para depois da morte...
A senhora administra o legado de Saramago e seu acervo. Passada quase uma década de sua morte, que aspectos de sua literatura a senhora tem visto serem mais abordados por pesquisadores e acadêmicos que visitam o Instituto à cata de subsídios para suas pesquisas?
A obra de José Saramago gera interesse. As distopias talvez sejam as mais lidas: Ensaio sobre a Cegueira, Ensaio sobre a Lucidez e As Intermitências da Morte, que formam uma trilogia que fala sobre o mundo e sobre o momento que estamos vivendo. Cegos que vendo não veem.