Pilar del Río, "que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar", como escreveu o escritor José Saramago na dedicatória do livro As Pequenas Memórias (2006), veio para continuá-lo – é assim que a jornalista, tradutora e presidente da Fundação José Saramago descreve a sua missão desde a morte do marido, em 18 de junho de 2010. Dedicada a eternizar a vida e a obra do autor premiado com o Nobel de Literatura em 1998, a promover a cultura e a defender a Declaração Universal dos Direitos Humanos – missões iniciais do instituto fundado em 2007, quando Saramago ainda vivia –, Pilar se equilibra entre a forte personalidade espanhola e o peso de um legado imensamente português, que ajudou a construir.
A revisora e tradutora das obras de Saramago para o espanhol conversou com ZH sobre sua vida ao lado do escritor, com quem foi casada por mais de duas décadas – e de quem era 28 anos mais jovem. Espanhola de Andaluzia, Pilar, 67 anos, primogênita de 15 irmãos, fala com firmeza sobre suas escolhas – que incluíram abrir mão da profissão e do país onde nasceu para acompanhar a carreira do marido –, e como manteve sua autonomia frente a isso.
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Prestes a vir ao Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorre em julho, e recém agraciada com o Prémio Luso-Espanhol de Cultura, Pilar se recusa a viver de "saudade". Acredita que a vida é continuarmos uns aos outros. Saramago, antes de morrer, já sabia disso. Em A Viagem do Elefante (2008), profetizou em dedicatória: "A Pilar, que não deixou que eu morresse".
Quem é a Pilar hoje, aos 67 anos e há sete sem José Saramago?
Não sejamos tão românticos. Cada um de nós é o produto de si próprio. Sou a pessoa que José Saramago elegeu para compartilhar a vida, só que sete anos mais velha... e estragada. No mais, com a mesma posição, curiosidade e interesse. Não sou a mulher de Saramago, ou viúva dele, sou uma pessoa que não corresponde a estereótipos, que não segue as normas sociais que se esperam de alguém da minha idade. Sou alguém que todos os dias, ao acordar, pensa no que vai fazer da vida. Não tenho um caminho definido. Acredito que cada um tem a vida que faz. Mas acho que sou uma privilegiada porque vivi uma história singular ao lado de José.
A senhora foi jornalista da sua comunidade durante a ditadura franquista na Espanha, certo? Como foi viver naquela época?
Não era fácil ser jornalista com a liberdade sequestrada. Nem ser mulher em um mundo de homens, mas a sensibilidade e a inteligência existem para serem usadas. Nós, os jornalistas democratas, estávamos contra a ditadura, por mais que os meios fossem submissos ao poder. E isso nos fazia tentar furar, e conseguir, muitas vezes, as próprias empresas. Sabíamos que nem sempre compartilhávamos dos mesmos critérios que as empresas para as quais trabalhávamos. Elas compravam o nosso trabalho. Sobre o fato de ser mulher, era, como é hoje, uma militância, não as nossas consciências. Agora há mais mulheres trabalhando nos meios de comunicação. Mas a mídia, hoje, também no Brasil, quer inviabilizar as mulheres. E fazem isso, por exemplo, não chamando no feminino o que é feminino. Dizem "a presidente" como se a palavra "presidenta" não estivesse nos dicionários. Enfim, são coisas do patriarcado que ainda não foram superadas.
A senhora é símbolo de uma mulher forte e independente. Mas largou seu país e sua profissão para viver cuidando da obra e da agenda de seu marido. Como conciliar esses dois papéis, sem cair em contradição?
Sou uma mulher autônoma, posso viver onde quiser e com quem quiser. Digamos que consegui sair da maldição que me fazia ser uma esposa, uma dona de casa, de estar preocupada com o dinheiro e com a roupa que vou vestir, e consegui pensar por mim mesma. Hoje estou na vida pelos outros. Sou um sujeito social. Não vivo com normas, vivo com pessoas. Consegui manter minha individualidade sendo eu mesma, quer dizer, sendo a pessoa que José Saramago sabia que não ia perder sua autonomia. Estudei Jornalismo porque gostava de saber e de contar. Isso foi muitos anos antes de ter um filho e estar casada com um escritor. Quando as circunstâncias da minha vida mudaram, segui lendo e contando, só que não como profissional.
Falando um pouco da sua vida com Saramago, lembra quando se conheceram?
Nos conhecemos em Lisboa. Eu vim para Lisboa para percorrer o itinerário do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis e entrei em contato com o autor da engenhosa obra porque sabia que agradecer o prazer da leitura é uma obrigação. Tomamos um café, visitamos o túmulo de Fernando Pessoa. Foi isso.
E depois?
Passaram-se alguns meses e recebi uma carta de José perguntando se poderíamos nos encontrar. A carta dizia: "Se as circunstâncias da vida me permitirem, gostaria de te ir ver". José descreve o que sentiu em A Jangada de Pedra, que foi como se a terra estivesse tremendo.
Como era a rotina de vocês? Muitas pessoas têm curiosidade em saber como era compartilhar a rotina com Saramago.
Eu não vivia com o Saramago, vivia com o José. E era extraordinário porque ele era extraordinariamente encantador e simples. Sem nenhuma impostação. Conquistamos nossa liberdade, e por isso éramos livres para casar e fazer tudo o que fizemos. Nos ajudamos mutuamente a que nunca os interesses se sobrepusessem aos objetivos que tínhamos. E fazer da vida algo mais humano.
Uma vez, a senhora mencionou, em uma entrevista, que José era uma maldição.
(risos) Disse que José era uma maldição quando me perguntaram sobre ter outro namorado, porque pergunto: há outro homem como ele? É uma maldição porque ocupou a minha vida, mas também é uma bênção. E o mesmo eu fui para ele.
Para a produção do documentário José e Pilar (2010, dirigido por Miguel Gonçalves Mendes), uma equipe acompanhou o dia a dia de vocês durante quatro anos. Como foi a experiência?
Foi acontecendo com naturalidade, e dessa experiência surgiu um grande filme. É um privilégio para os leitores de José Saramago, que puderam penetrar em seu cotidiano. O diretor nos procurou durante anos, até que topamos, e José entendeu que havia um projeto grande ali. Como era uma produção discreta, que respeitava nossa intimidade, foi natural.
O documentário expõe alguns dos momentos de doença de Saramago. A senhora se arrepende de ter permitido a divulgação desses episódios?
Não me arrependo. Pelo contrário, celebro poder ter participado ativamente em um projeto que aproxima o escritor e os leitores. Os escritores escrevem para contar, e essa é uma maneira de comunicar. Comunicar em todas as idades, deixemos de festejar a juventude como única glória.
Em José e Pilar, vemos uma parceria muito grande entre vocês dois, mas também uma vida dedicada aos outros. A senhora rejeita a concepção tradicional de família?
Sim, porque acima dos laços biológicos, estão os laços da razão e da consciência. E porque nós, seres humanos, somos semelhantes uns aos outros. Desculpem, mas não entendo esse conceito tão pequeno de família. Por que é mais importante a pessoa que está dentro de casa do que a pessoa que está na rua, pedindo esmola? Quem está na rua é tão semelhante a nós como os filhos. Minha família é mais do que o meu filho e meus 14 irmãos. Esse conceito de família é uma simplificação estúpida. Também tenho meus parentes, e os meus são muitos, de todas as cores e todos os sobrenomes.
A senhora viaja o mundo falando sobre a obra de Saramago, mas também sobre outros temas, como o feminismo. Hoje vivemos um momento de empoderamento feminino, em que as mulheres estão criando coragem para denunciar todo tipo de abusos e exigir mudanças. Como enxerga esse movimento?
Cada escravo liberado era um motivo de regozijo para uma sociedade que pensava. Os movimentos de liberação e de empoderamento das mulheres não deixam de ser um motivo de satisfação para todos aqueles que têm saúde mental. Modestamente, me junto a essa corrente.
Ao mesmo tempo que tem aspectos positivos, este movimento mostra o quanto nossa sociedade ainda é machista.
Sim, vivemos em uma sociedade patriarcal e absurdamente dependente dos movimentos estratégicos, e às vezes canalhas, que alguns insistem em chamar de religiosos. Tudo o que foge desse espaço de escuridão é um avanço para o mundo. É incompatível ser machista, ou até mesmo não ser feminista, e se dizer uma pessoa boa. Como se pode ser uma pessoa boa e condenar metade da população à miséria? Ser uma boa pessoa e suprimir direitos humanos? Não são direitos do homem, são direitos humanos, entre eles o respeito e a igualdade. I-GUAL-DA-DE. Entre ricos e pobres, homens e mulheres. E liberdade de opinião, e educação.
Quais são seus desafios como mulher?
Ser um sujeito livre e hegemônico, assim como se eu fosse um escravo, um negro ou um indígena. Na sociedade, o grande desafio é ser um ser humano livre. Ninguém me vai castrar, nenhuma religião, nenhum poder. Reivindico para as mulheres a mesma liberdade que reivindicávamos para os escravos, e que eu reivindico para os pobres.
Quando eleita, a então presidente Dilma Rousseff...
Ay, no! Não, não, não.... (risos)
Reformulando: quando eleita, a então presidenta Dilma Rousseff disse que gostaria de ser chamada de presidenta, como uma homenagem às mulheres.
Não é uma homenagem para as mulheres. É não cometer um erro ortográfico. Olhem o dicionário e verão "presidenta: mulher que preside". E, na linha abaixo, consta "presidente: homem que preside". Não é porque nunca tinha havido, jamais, alguma mulher presidenta, que a palavra não exista. Me façam um favor, não humilhem a todas as mulheres. Cada vez que dizem a palavra "presidente" referido a uma mulher estão cometendo um crime de ignorância porque estão tratando de ignorar nós todas. Temos que combater essa cultura de que o poder é só masculino. Aí, na sua redação, não é uma mulher que manda? E quando mandam alguma vez, é considerada uma anedota, e se faz um impeachment, como fizeram com a querida Dilma.
Falando em impeachment, vivemos no Brasil e no mundo, um movimento de retomada dos partidos conservadores. A que atribui essa tendência? Seria uma falha dos governos de esquerda, que apareceu quando assumiram o poder?
A esquerda tem muitos predadores no seu entorno, mas mesmo assim conseguiu melhoras sociais. Mas o sistema avança sem piedade.
O neoliberalismo avança para que os cidadãos se resignem e se calem. E também há outro problema, que é a desistência cívica. Dizemos sempre que os políticos são corruptos, mas eles são os representantes da sociedade. Talvez a sociedade precise olhar para si um pouco mais, e se dará conta de que a corrupção pode nascer dentro de cada casa.
Na sua análise, para onde estamos caminhando como sociedade?
Estamos dando um passo a mais para a borda do precipício. Parece que é isso que fazemos a cada dia, com nossas decisões egoístas. Temos luz elétrica, tecnologia para avançar e acabar com a miséria e a fome. Mas o que não avança, retrocede. E o que vemos retroceder é o que de melhor o ser humano tem: a dignidade, que cada dia é pisada pelo sistema. Se falamos de França, de atentados, de fundamentalistas cristãos, evangélicos, extremistas muçulmanos, vemos que há terror em toda parte, e tudo isso é retrocesso. Numa página de jornal você não conseguiria colocar tudo o que tenho para dizer sobre isso. Para cada tema desses, poderia me dedicar uma vida.
E no seu trabalho atual, por meio da cultura, das obras de Saramago, imagino que tente combater isso. Pilar, a senhora hoje é presidenta da fundação que cuida das obras de Saramago. Vive de saudade?
Eu não vivo de saudade, vivo de estupendas realidades, que são as que a Fundação administra graças ao trabalho daqueles que fizeram dela algo mais do que um simples trabalho. Atualmente, eu não tenho horas para nada mais do que atender a esse projeto que pretende intervir no mundo, lutando contra a falta de afeto e fazendo com que os direitos e os deveres humanos sejam a norma de convivência.
Como é conviver com a obra de Saramago, sem tê-lo ao seu lado?
A vida é continuar uns aos outros. Hoje estamos uns, amanhã estamos outros. E assim vamos nos continuando. Temos as memórias e estamos construindo para o futuro. Não consigo ter esse sentimento de saudade, tenho o sentimento de solidariedade, de utilidade, e de continuar. Se sinto falta, é meu problema, mas não vou perder um segundo por isso, sentindo falta, quando há outras pessoas com quem posso estar e ajudar, e ser ajudada.
A senhora, que já participou de diversos eventos de literatura no Brasil, como avalia a produção literária brasileira atual? Acredita que falta incentivo na cultura no Brasil?
Acredito que existem escritos brasileiros interessados em não serem laminados pela vulgaridade dos mercados, que reconhecem que são grandes porque escrevem coisas grandes. O mercado quer "50 tons de cinza", e dão às pessoas isso uma e outra vez. Eu digo que não. Tem que oferecer outros autores. Eu digo que o país de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Jorge Amado e Chico Buarque e de tantos outros autores magníficos não pode estar oferecendo só a vulgaridade do mercado.
Qual é o papel da cultura em um país em crise, como é o caso do Brasil?
Ou existe a cultura ou tudo será dominação do sistema capitalista sem possibilidade de contrapartida. A cultura é necessária para que se diga "não", é um empoderamento cívico e moral imprescindível para a harmonia. A outra opção é não sair da escravidão.
Qual foi a coisa mais importante que Saramago ensinou? E a senhora a ele?
Viver sem medo. E eu a ele? Viver sem medo.