Embora ministre uma das mais antigas oficinas literárias do Brasil e tenha liderado a instauração da única pós-graduação em Escrita Criativa do país, Luiz Antonio de Assis Brasil só aceitou colocar essa experiência em forma de livro, o recém lançado Escrever Ficção depois de um convite da editora. Nesta entrevista, concedida em sua casa, o autor fala do novo livro e da arte da escrita.
O senhor mantém uma oficina desde 1985 e é provavelmente o mais antigo professor de um curso do gênero no Brasil. Por que demorou tanto para que este livro fosse escrito?
O livro saiu agora porque eu recebi um convite do editor Luiz Schwarcz. E por que nunca escrevi antes? Não porque não tivesse havido provocações dos alunos. Acho que foram várias coisas. A primeira delas, a preguiça (risos). Segundo, eu teria que interromper algum projeto de livro próprio em que estivesse trabalhando. Teria que parar um ano para escrever isso. Mas houve o acaso de que, quando recebi o convite, não tinha ainda começado nada novo. Recém havia publicado O Inverno e Depois e estava pensando em alguma outra coisa. Então, foi o momento certo.
O livro sistematiza o que o senhor vem ensinando, mas tem o fio condutor de um aluno, Thiago, que vem lhe apresentar um projeto de romance e, ao conversar com ele, o senhor também está conversando com o leitor. É uma estratégia de ficcionista?
Esse Thiago é a soma de muitos Thiagos, muitas Alices, muitos alunos. Acho que sou o único cara no mundo que está orientando a escrita de oito romances ao mesmo tempo, nas fases de mestrado e doutorado. Eu tenho trabalhado só com a escrita criativa, não dou mais aulas de teoria, então acompanho a escrita e a elaboração desses romances. Foi uma escolha que, espero, será útil para as pessoas. Tenho contato com muitos aspirantes a autores que são pessoas preparadas, bem intencionadas, mas falta técnica, então talvez um livro desses possa ser útil. É um manual, não nego que seja. Alguns amigos nem queriam que eu usasse a palavra "manual": "Isso deprecia o livro", me disseram. O título original era Sobre a Escrita da Ficção. Aí o Schwarcz me sugeriu o Escrever Ficção, achei melhor, tem um verbo, é mais forte. Nem havia um subtítulo, mas a editora me perguntou o que era, em essência o livro, e eu disse: "É um manual de escrita de ficção. Tem alguns momentos reflexivos, mas é um manual". Ela respondeu: "Então por que não colocar isso como subtítulo?".
O senhor ilustra seu ensaio com exemplos e trechos tirados tanto de clássicos da literatura quanto de escritores contemporâneos, internacionais e nacionais. Alguns dos nacionais até foram seus ex-alunos.
Procurei me cercar de todo tipo de literatura para atingir uma gama mais ampla de leitores. Foi um trabalho muito pensado. Tive a colaboração do Luís Roberto Amabile, que foi meu aluno e hoje dá aula na universidade, e que também me lembrou de alguns nomes. Ele me alertava para coisas que eu havia falado em aula e que poderiam ser incluídas no livro. A gente discutiu muito sobre o último capítulo, que é um roteiro para construção de um romance linear, e eu tinha muitas dúvidas sobre se mantinha ou não esse capítulo. Ele me convenceu a manter.
Ao longo das últimas décadas, o senhor passou por fases em que era muito discutida a validade das oficinas literárias. Sente que esse clima hoje amenizou?
Essa era uma discussão muito acesa há uns 25 anos. Mas, com o decorrer do tempo, o pessoal foi aceitando. E aqui tenho de afirmar uma coisa importante: sempre tive aceitação e apoio na universidade, desde o início, mas havia muitas críticas de fora. Acho até natural, era uma coisa nova, e as pessoas costumam resistir, a primeira reação é negar. E o ambiente em que havia as maiores resistências era o de outros escritores. Não dos leitores, não dos professores ou da academia, mas dos escritores. Não vou dizer que eram pessoas que queriam preservar aquela mística associada ao trabalho da criação, da inspiração. Acho que eram simplesmente pessoas que não acreditavam naquilo. Muita entrevista que dei começava invariavelmente com a pergunta: "É possível ensinar alguém a escrever?". Depois de um tempo eu passei a dizer: "Essa pergunta, assim, eu não respondo mais". Aí me perguntavam: "Mas então que pergunta eu devo fazer?". E eu respondia: "É possível que alguém aprenda a escrever"? E acrescentava: "Sim". A primeira coisa, que deveria vir antes de tudo, é muita leitura. Depois, muita escrita. Depois, ouvir os outros, e assim por diante, e era possível, portanto, montar um curso desses que poderia ser útil para alguns, para outros, não.
O senhor pensa nesse livro também como uma espécie de legado?
É uma ideia arrepiante, porque nos leva diretamente à nossa mortalidade, mas tenho de concordar, pensando friamente. Mas reforço que esse livro representa minha reflexão de agora. Muitas coisas que eu pensava e ensinava antes mudaram. Coisas que eu coloquei no livro sobre a construção da personagem, sua questão essencial, a estrutura orgânica do romance, são novas. O que significa que estou ainda evoluindo.
Vivemos uma época de polarização em que a cultura parece estar sob ataque. Como o senhor vê essa situação?
O humanismo está vivo como nunca. Ele está sendo vítima de uma tentativa de sufocamento por algumas vertentes que agem com muita presença e muita truculência, o que é um fenômeno mundial neste momento. Pelo menos no Ocidente. Mas os valores humanísticos existem há dois milênios, como vão desaparecer? Podem ser sufocados, podem ser reprimidos. Já tivemos momentos históricos trágicos. Quem iria imaginar que depois da República de Weimar, em que tudo era liberdade, criação, viria o nazismo? Mas isso também passou. O humanismo pode ser sufocado, pode ser temporariamente calado, mas não vai morrer.