A memória imaginada como um palácio em que se guardam coisas importantes em cada cômodo é uma técnica milenar de memorização. Encantada pelos avessos ao longo de toda sua obra, a escritora Lya Luft inverte o truque e as proporções em seu novo livro, A Casa Inventada.
As dimensões aqui são mais modestas, uma casa, como a que a escritora viveu com a família na infância em Santa Cruz, e o que Lya distribui pelos sete capítulos, cada um deles estruturado como um “cômodo” de uma casa, não são memórias ou dados inesquecíveis, são recordações que mantêm uma atmosfera de imprecisão e que, em boa parte do que se lembra, é inventado.
No misto de memorialismo e ficção semelhante a obras anteriores, como O Rio do Meio (1996) e Mar de Dentro (2000), Lya contempla sua própria consciência e as memórias de seu passado nos aposentos de uma casa imaginária: a porta de entrada, a sala da família, o quarto das crianças, um pátio, as sombras ameaçadoras de um porão onde se escondem a morte e os segredos. Não é um livro de memórias tradicional, não há datas, e sim climas.
– Conversei com o editor quando mandei para ele o livro pronto: "para variar ninguém vai saber o que é isso, porque é uma conversa misturada". Claro que tem muita coisa de ficção, porque sou uma romancista. E fiz poemas introduzindo capítulos. É um pouco ficção, um pouco memória, do jeito que estou gostando de escrever – conta ela.
Lya apresenta o livro imaginando uma espiada pela fechadura da porta de entrada, e dali passeia por outros cômodos. O quarto de infância, o jardim, as salas que reuniam a família em jantares nos quais a inquieta Lya percebia as pequenas tensões comuns à convivência dos adultos.
– Escutando o mundo adulto aprendi que as palavras podiam ser plumas e punhais, e que os adultos também mentiam. As conversas à mesa não tinham nada de mais, eram absolutamente triviais, conversas de uma família simples de interior, de boas pessoas. Ou as das casas de amigas. Mas percebi que havia sempre um por trás. E era uma família normal, não havia ódios secretos ou inimizades. Mas havia o avesso, essa coisa nas pessoas que me fascinava, a ambiguidade. Não era nem hipocrisia, era a ambiguidade – conta.
O livro faz saltos cronológicos e episódicos, passando da infância à adolescência, à idade adulta, para depois retornar à infância. O fio condutor discernível é a construção da própria Lya como a "inventora da casa", de criança cheia de imaginação a criadora de personagens, entre eles seu próprio duplo. A certa altura, Lya, uma criança que observa o mundo com olhos inquietos e silenciosos, vê seu reflexo no espelho ganhar vida. Rebatizada Pandora, a menina do espelho se torna amiga imaginária e por vezes antagonista, algo que ecoa uma situação semelhante transformada em ficção no romance Reunião de Família (1982).
– Quando tinha uns 10 anos, havia um toucador em que se puxava uma mesinha e eu fazia os temas em frente ao espelho. E me olhava e ficava pensando, de verdade, já escrevi isso em outros livros, "e se eu sorrir e ela no espelho ficar séria". Isso não é nem muito original. Acho que para muita gente há esses momentos em que a realidade parece estranha – relembra.
Livro foi publicado em período de luto
A publicação do livro está sendo em um momento pessoal difícil. Na quarta das sete seções do livro, O Quarto das Crianças, Lya faz um salto da criança que foi para as crianças que teve, os seus filhos, presentes em memórias e diálogos. Um deles, esperto e maravilhado com um microscópio que ganhara de presente, volta de ônibus e faz perguntas em voz alta que evoluem da situação familiar de Jesus à concepção humana, para desconcerto da mãe no coletivo. A criança da história é André, filho do meio do casamento de Lya com o linguista Celso Pedro Luft, que morreu no início de novembro aos 51 anos, duas semanas antes da publicação de A Casa Inventada.
– Foi o único pedaço do livro que ele leu, transcrevi e enviei por e-mail, porque havia falado dele na história, e ele me respondeu comentando que lembrava muito bem daquele dia. Não costumo fazer isso, não sei por que fiz agora, é desses mistérios – diz.
A Casa Inventada
- Lya Luft
- Ensaio. Record, 112 páginas
- R$ 29,90 (impresso)
- R$ 19,90 (e-book)