Há três semanas, eu saía da redação de ZH e caminhava algumas quadras até a Aldeia, para a oficina de contos de João Gilberto Noll. Na tarde da última terça-feira, o mestre não apareceu. À noite, sua sobrinha o encontrou sem vida no apartamento em que morava, solitário no centro da cidade, vítima de um mal súbito.
Noll nunca faltava às aulas das terças. Ao contrário, estava lá sempre pelo menos 30 minutos antes do combinado. O sumiço não era bom presságio. No fim da tarde, por mero acaso, encontrei o escritor Jeferson Tenório. Ele também se mostrou preocupado em relação ao desaparecimento do autor:
– Duas vezes caminhei com o Noll. Como eu, ele também mora no centro. Vi ele na rua, me apresentei e conversamos. Apesar de todo o reconhecimento que tem, é um escritor que ouve, que se interessa por quem fala com ele.
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A preocupação com os horários das aulas e o acolhimento atencioso aos jovens escritores expõem um papel que João Gilberto Noll personificava nos últimos anos na cena literária de Porto Alegre. Apesar de recluso, era um dos principais incentivadores de quem pretendia se aventurar pela criação literária.
IMPACTO JÁ NO PRIMEIRO LIVRO
Nascido na Capital, Noll completaria 71 anos em abril. Formado em Letras pela UFRGS, onde conviveu com Caio Fernando Abreu, o autor se lançou na literatura em 1980, depois de ter trabalhado como jornalista e revisor na imprensa carioca e paulista. Seu livro de estreia, o volume de contos O Cego e a Dançarina, foi o prenúncio do êxito de sua carreira: foi eleito revelação do ano, pela Associação Paulista de Críticos de Arte e pelo júri do Prêmio Jabuti; além de ficção do ano, pelo Instituto Nacional do Livro.
– Não me achava maduro para publicar até então. E esse livro saiu de um fôlego só – disse Noll em entrevista a ZH em 2013. – Eu o escrevi como um livro de contos; não eram histórias esparsas que eu já tinha. Aproveitei uma época em que estava desempregado, e morava no Rio de Janeiro, e me fechei para escrever esse livro. Nem abria a janela, ficava com luz artificial o tempo inteiro, para me concentrar mais. Não sabia que escrever, para mim, seria assim, muito mais pautado no inconsciente.
Depois, vieram outros 17 livros, entre contos, romances e infantojuvenis, que lhe deram mais quatro troféus Jabuti. Além disso, foi eleito como o grande vencedor Prêmio Fato Literário de 2009, e era presença cativa em eventos literários, participando da Flip em 2008 e 2011.
Entre as publicações de Noll, Lorde (2004) tinha certa predileção do autor. O romance, sobre um escritor de meia-idade que se degrada em um pequeno quarto em Londres, era muita vezes o escolhido pelo autor para leituras públicas – suas performances se tornaram célebres no meio literário. A história foi inspirada na própria experiência de Noll, que foi residente no King’s College, em Londres – ele também foi professor na PUC-RJ e na Universidade da Califórnia.
– A literatura revela coisas que escondemos no cotidiano. É preciso ter coragem para escrevê-las – dizia o autor em suas oficinas, nas quais gostava de ler contos de Clarice Lispector, Sergio Sant’Anna e Raymond Carver.
Noll não deixou filhos. Mas a solidão do escritor não era continental como a de seus personagens. A partir de contos, romances, oficinas ou caminhadas com conhecidos, o escritor estimulava leitores e escritores a encarar o ofício literário com coragem. É uma herança que continuará pulsando em todos os que foram ou ainda serão tocados por sua obra.