O Gonçalo M. Tavares que estará hoje em Canoas, aos 46 anos, não é o mesmo que esteve na Feira do Livro de Porto Alegre, ou na FestiPoa Literária. Nunca é o mesmo. Tentar enquadrá-lo numa definição é ideia vã. É descrever uma paisagem de areia movediça. Gonçalo e sua produção estão em inquieto movimento. A cada lançamento se movem, se reordenam e se releem os livros já escritos (são quase 40 lançados desde 2001).
Meu trajeto de leitura da sua obra começou com um livrinho de 80 páginas: O senhor Henri. Desde então recomendo a leitura do autor. O senhor Henri é inclassificável. Conto, poesia, fábula: não há como nominá-lo. Mas tinha qualquer coisa nos pequenos textos que me desconcertava. E isso sem eu saber que esse senhor era referência ao poeta belga Henri Michaux. Sem eu saber que era precedido pelo senhor Valéry (o Paul). E sem saber que já havia, naquela altura, os senhores Brecht, Calvino e Juarroz, compondo a coleção O bairro. Se há semelhanças entre eles (são uma coleção), é inegável que é muito rico ler do Valéry ao Eliot (último lançado) e perceber a estrutura mudar, morador a morador do bairro.
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Mas fosse só O bairro o trabalho dele, talvez desse para catalogar o autor Gonçalo M. Tavares. Só que há O reino, ou Livros negros, série de quatro narrativas longas que, se têm forte parentesco nos nomes de personagens (Hans, Lenz, Klaus), se todos falam de loucura, razão, de grandes temas do século 20 como guerra, tecnologia ou fé, ao mesmo tempo fogem da ideia estanque e continuada das trilogias (e não só por ser uma tetralogia). E ainda há a poesia de Gonçalo (dos muy distintos Livro da dança e 1). Ele também produziu experimentos como A pernaesquerda de Paris seguida de Roland Barthes e Robert Musil (só vendo as tabelas literárias para entender) ou o teatro metalinguístico de A colher de Samuel Beckett. E Matteo perdeu o emprego, Short movies e Canções mexicanas, ou os não lançados no Brasil O torciologologista, excelência e Atlas do corpo e da imaginação, cada qual um caminho diferente, abrindo veredas entre prosa, poesia, ensaio, pensamento. E, meu deus, Uma viagem a Índia: livro merecedor de muitos livros, eis que dialoga com a Odisseia, Ulisses, Lusíadas e com nosso tempo sem sentido. E faz isso parecer tão natural. Impossível falar um a um dos seus livros. São tijolos de uma obra maluca em que cada bloco tem forma diferente e, por isso, produz beleza, proporção e significados fora de esquadro. Alguma coisa Gaudí. Um Parc Güell literário.
Aliás, essa obra que não encaixa faz lembrar de aulas que assisti do Gonçalo na cadeira de Arte do Romance na Universidade Nova de Lisboa. Ele falou sobre o verbo errar. Tão sinônimo de falha. Mas Gonçalo recuperava a importância de errar para descobrir o novo. Dizia que quem nunca se perde chega sempre onde espera e volta para o mesmo lugar de onde saiu. Seguro e certo: mesmice. Já ao errar, pela frente há o desconhecido. E me parece que assim Gonçalo parte para suas obras. Sabendo de onde partiu, mas sem mapa.
Coloco em perspectiva o primeiro livro que li dele (O senhor Henri) e o último (Uma menina está perdida no meio do seu século à procura do pai) e vejo essa errância. Eles são muito diferentes. Ao criar esses dois pontos extremos, percebo que o percurso de ler Gonçalo é como os grandes livros: o início pode fisgar, o fim pode ser revelador, mas como, nas viagens, o percurso faz valer a pena. Ele erra na escrita, nós erramos pelos caminhos da sua obra. E tudo dá tão certo.
*Autor de Só faltou o título e doutorando em Escrita Criativa na PUCRS.