A diretora teatral Adriane Mottola é admiradora do trabalho do dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco desde que assistiu a uma montagem de A Ira de Narciso no festival Santiago a Mil, no Chile, em 2015. Arrebatada, começou a garimpar outros textos dele, até encontrar Kassandra, pelo qual se apaixonou. Foi necessária uma espera de oito anos para estrear a sua encenação da obra, o que ocorrerá nesta sexta (5), às 20h, no Estúdio Stravaganza, em Porto Alegre (veja detalhes sobre a temporada ao final do texto).
— Finalmente encontrei a protagonista ideal para o projeto, a Estrela — diz a diretora.
Entra em cena Estrela Dinn, atriz trans conhecida no teatro gaúcho por trabalhos com a Cia. Rústica. Esta montagem de Kassandra, produzida pela Cia. Stravaganza, outro grupo de referência no Rio Grande do Sul e que está com uma programação especial de 36 anos de história, é o seu primeiro solo. Considera "um grande presente" recebido de Adriane.
— Tenho aquela sensação de que este trabalho será um daqueles que daqui a 30 ou 40 anos eu vou olhar para trás e vão estar lá como um marco — projeta Estrela, que no início do ano contou a história de travestis brasileiras no espetáculo Estrelas — A Pessoa Nasce pra Brilhar, contracenando com Diego Nardi, sob direção de Patrícia Fagundes.
A experiência promete ser singular também para o público de Kassandra, que não verá a personagem exatamente como retratada pelos gregos antigos. Na tragédia Agamêmnon, de Ésquilo, o deus Apolo promete a Cassandra (personagem cujo nome é usualmente escrito com C) o dom de prever o futuro caso ceda a seus desejos. Ela aceita a proposta e recebe o poder, mas quebra a palavra e nega intimidade a Apolo. Como vingança, ele lança a maldição de que ninguém acreditará nas profecias dela. Na reescrita de Blanco, que incorpora e expande o mito, Kassandra (agora com K) é uma mulher trans, sem identidade ou endereço, que se comunica com as pessoas por meio de um inglês imperfeito e divertido — o espetáculo é falado nessa língua própria dela. Estrela explica:
— O fato de a peça ser feita em um idioma diferente daquele que se fala no lugar onde ela acontece é parte fundamental da dramaturgia. Kassandra é uma estrangeira em um país cuja língua ela não fala e a única que fala, fora a sua língua natal, é a inglesa; porém, de uma maneira muito rudimentar.
Não será a única surpresa da montagem. Para receber o público, o Estúdio Stravaganza estará transformado em uma casa noturna, o Stravaganza Night Club, reduto de atmosfera underground decorado em tons de vermelho e preto, iluminado com néon. Colocar personagem e espectadores compartilhando o mesmo espaço é condição para uma experiência imersiva, defende Adriane:
— Nesse ambiente, ela chega de mansinho para contar os seus mistérios. Transita entre as mesas dispostas, se dirige a cada espectador como se cada um deles fosse o seu amigo mais íntimo, conta, questiona, teatraliza.
"Eu sei como é ser Kassandra", diz Estrela Dinn
A ambientação é tão importante que, em um episódio inusitado, a primeira montagem brasileira da peça — produzida pela Cia. La Vaca, de Florianópolis (SC), em 2012 — foi apresentada em Porto Alegre em 2016 na tradicional casa de entretenimento adulto Carmen's Club, no bairro Cidade Baixa. O estabelecimento foi aberto especialmente para a sessão, promovida pelo hoje extinto Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre.
A atriz e a diretora da montagem gaúcha não tiveram a oportunidade de assistir àquela atração, mas fizeram um exaustivo trabalho de pesquisa para elaborar a sua versão da peça. Adriane lembra que conheceu diferentes encenações:
— Pesquisei sobre todas as montagens de Kassandra ao redor do mundo, assisti a vídeos. Fui a Montevidéu ver a Kassandra dirigida por Gabriel Calderón, em que a protagonista é Roxana Blanco, irmã do autor. Alguns anos depois, assisti à Kassandra chilena dirigida por Soledad Gaspar e protagonizada por Lucas Balmaceda no festival Santiago a Mil.
Estrela conta que o primeiro objeto de pesquisa foi o próprio texto. Procurou identificar como se afasta e se aproxima da personagem. A outra parte do processo foi tentar "esquecer um pouco" a Cassandra do mito. Em outras palavras, procurou considerá-la "apenas mais uma peça do quebra-cabeça". As vivências da própria atriz e de outras travestis de hoje também são peças desse quebra-cabeça. São pessoas que "precisam migrar de um lugar a outro, sem endereço, sem casa, sem lenço, sem documento", em suas palavras. É nesse ponto que a vida confere verdade ao teatro.
— Pode parecer arrogante, mas eu sei o que estou dizendo — atesta Estrela. — Parece que aquela história se encaixa na minha carne, as palavras na minha boca. Eu sei como é ser Kassandra, pelo menos a que está na minha imaginação, e dei forma para isso da maneira mais honesta e dedicada possível.
Kassandra, da Cia. Stravaganza
- Desta sexta-feira (5) a domingo (7) e nos dias 12, 19 e 26 de julho, sempre às 20h. O bar do local estará aberto a partir das 19h
- Estúdio Stravaganza (Rua Dr. Olinto de Oliveira, 68), em Porto Alegre
- Ingressos: R$ 30 (meia-entrada) e R$ 60 (inteira) na Sympla
- Duração: 70 minutos. Classificação etária: 16 anos