As três melhores coisas que Deus fez foram o mar, Hamlet e o Don Giovanni de Mozart, escreveu Gustave Flaubert. Pela primeira vez e por apenas dois dias, um dos itens da lista do escritor francês está ao alcance do público em Porto Alegre. A obra-prima do compositor austríaco será encenada neste final de semana no Theatro São Pedro pela Ospa.
O pioneirismo não recai somente sobre a peça escolhida: o fosso, espaço localizado em plano inferior ao nível do palco, será usado para receber os instrumentistas da orquestra sinfônica, função para a qual foi concebido. Uma parede erguida no local na década de 1980 foi finalmente removida e agora o fosso pode receber mais de 40 músicos. Embora, por falta de alternativa, a orquestra seja posicionada sobre o palco em muitas casas de espetáculos, a solução contraria os fundamentos da ópera e do balé porque disputa com cantores e bailarinos a atenção do público e o espaço, explica o diretor artístico e maestro da Ospa, Evandro Matté.
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A reabilitação do local é indispensável para a montagem de óperas tradicionais com a instrumentação original, geralmente numerosa, esclarece Matté. Para o regente, a prática de alguns teatros do Brasil que decidiram eliminar o fosso, seja para dar mais lugares para a plateia, seja por o considerarem dispensável, é incompreensível. E, para quem questiona se ficar "escondido" aborrece os músicos, o maestro nega. Alguns instrumentistas até preferem, afirma.
Espetáculo narra o mito de Don Juan
A versão de Don Giovanni que será encenada é a original, apresentada em Praga há 230 anos, e escrita sobre o libreto de Lorenzo da Ponte. Trata-se de uma releitura do mito de Don Juan, um aristocrata conquistador, violento e cruel, que ilude as vítimas de sua sedução. A suposta vilania, porém, não carrega maniqueísmo. Conforme o barítono Homero Velho, que interpreta o personagem título, Giovanni nunca planeja maldades, e sim age na busca da satisfação dos desejos.
– Ele é fiel ao que acredita e não se arrepende – afirma o cantor.
No papel de Zerlina, um dos alvos do conquistador, a soprano Carla Cottini considera os personagens tridimensionais uma das maiores virtudes do compositor. Atuando no mesmo papel com o qual estreou profissionalmente na ópera em 2013, a ex-bailarina clássica se emociona ao falar de Mozart. Segundo a soprano, a humanidade pungente dos papéis escritos pelo austríaco permite que ela "viva" sob a pele do outro, desenvolva empatia e alteridade.
– É o maior privilégio. Isso me faz crescer como ser humano – resume.
O diretor cênico Caetano Pimentel desenvolveu um conceito contemporâneo para a montagem, eliminando apenas trejeitos e afetações da época. Pimentel argumenta que o personagem, o conquistador que obtém ou toma seu objeto de desejo, é uma figura que pode estar presente em qualquer época. Ele relaciona o tema ao assédio e à violência dos dias atuais.
Pela primeira vez trabalhando com Matté, Pimentel aceitou prontamente o convite para a montagem de Don Giovanni, apesar do desafio de ensaiar pouco tempo com toda a equipe reunida, cerca de 10 dias. Como a ópera tem integrantes de várias partes do país, boa parte das preparações ocorreram em separado, explica. Carla Cottini, por exemplo, saiu de uma apresentação em Berlim direto para o aeroporto e chegou a Porto Alegre ainda usando a maquiagem de cena. A considerar o acolhimento do público, o esforço vale a pena. De acordo com Matté, as óperas montadas pela Ospa sempre têm casa cheia.
Confirma a entrevista com o maestro Evandro Matté:
Por que Don Giovanni é considerada uma das grandes obras-primas de Mozart?
Porque, na genialidade de Mozart, ele conseguiu fazer com que a música representasse exatamente a dramaticidade daquilo que está acontecendo no palco. A conexão entre a música, cena e o que está sendo cantado é considerada perfeita. Por isso costumam chamá-la de "ópera das óperas". Até Don Giovanni, as óperas eram bufas-cômicas ou eram sérias-dramáticas. Mozart consegue fazer com que Don Giovanni tenha os dois elementos. Causou confusão, na época, porque os críticos não sabiam como classificá-la, se era uma ópera cômica ou uma ópera dramática.
O que distingue a Ospa das demais orquestras do Brasil?
A Ospa atende a uma grande diversificação de repertório e de público. Tem a série de concertos; a série de música instrumental pop; a série de concertos no interior; a série nas igrejas; concertos didáticos para crianças e uma ópera anual. E, a partir do ano que vem, vamos inserir um último elemento: o balé.