Em O Outro Lado de Hollywood (1995), clássico documentário sobre a representação de personagens homossexuais na indústria cinematográfica, o historiador de cinema Richard Dyer diz que a ideia que fazemos de nós mesmos não se origina somente de nosso interior, mas de algo externo, da cultura, sendo que o cinema, uma das linguagens artísticas mais acessíveis, ajuda na construção de uma identidade própria. Ao assistir Keanu Reeves e River Phoenix como dois jovens libertários em Garotos de Programa (1991), filme de Gus Van Sant, Marcio Reolon não só se entendeu como gay, mas ganhou uma inspiração eterna.
— Tem uma cena dos dois na fogueira e o personagem do River Phoenix fala para o personagem do Keanu Reeves: "Eu quero muito te beijar, cara". Aquilo me despertou a vontade de viver o mundo de motocicleta como eles, vivendo aventuras. Essa pulsão de vida permanece em mim como contador de histórias — diz.
Ao lado de Filipe Matzembacher, Marcio dirigiu um dos filmes brasileiros mais premiados dos últimos anos, Tinta Bruta (2018), que narra a história de Pedro, um jovem introvertido que vive em Porto Alegre e encontra na internet um lugar em que pode soltar uma versão de si mesmo que não é bem-vinda em uma sociedade que exclui o diferente. O longa foi vencedor do Teddy Award, reconhecimento internacional do Festival de Cinema de Berlim dado às melhores produções com temática LGBT+.
Além de ser um filme queer, como se chama o tipo de cinema focado em personagens que fogem da heteronormatividade e estão inseridos em uma trama que questiona o status quo, também é uma história que humaniza identidades à margem da sociedade. Muito diferente da forma como gays, lésbicas, travestis e transexuais eram retratados nas décadas de 1920 e 1930, primórdios do cinema mainstream americano, quando surgiam sempre em papéis secundários e gerando alívio cômico, como O Outro Lado de Hollywood, disponível com tradução no YouTube, mostra didaticamente.
Para Denilson Lopes, professor na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador de cinema e homossexualidade, a caracterização afeminada do homem gay tornou-se um problema por ter sido, por muito tempo, o único tipo de representação.
— A figura da sissy era muito comum em comédias daquela época, e, mesmo que não se falasse sobre a sexualidade dessa figura, o público conseguia identificar que se tratava de um gay. Era um estereótipo? Era, mas o estereótipo não é uma mentira. Existem homossexuais masculinos que são afeminados, e não temos que ter nada contra isso. O problema do estereótipo é quando ele é usado para muitos tipos de personagens — argumenta.
Enquanto Hollywood investia na caracterização estereotipada da população LGBT+, produções mais independentes, inclusive no Brasil, já faziam algo diferente, observa Denilson. É de 1931 um dos filmes nacionais mais aclamados de todos os tempos, Limite, de Mário Peixoto. Considerado um marco do cinema experimental, o longa é um drama que, nos últimos anos, passou a ser classificado também como marco do cinema queer, isso sem tratar de sexualidade de forma explícita.
A conquista da individualidade
A diversidade na forma que gays, lésbicas e trans são retratados no cinema mais comercial só ganhou espaço nos últimos 20 anos, acompanhando a onda de manifestações a favor de minorias de gênero, como o Dia Internacional do Orgulho LGBT+, comemorado em 28 de junho e com ampla adesão no Brasil a partir do fim dos anos 1990. Com produções que começaram a trazer esse público para o centro da narrativa, mostrando-os a partir de seus dilemas existenciais, observa o cineasta e professor de cinema da PUCRS Eduardo Wannmacher.
— Os personagens começam a ser colocados em mais camadas, com mais complexidade, além de mais protagonismo. São personagens que conseguem conquistar sua individualidade, seu espaço e participação social. São pessoas que olham o mundo e dialogam sobre isso — reflete.
Autores de Beira-Mar (2015), outro filme com produção gaúcha focado em uma relação homossexual entre dois jovens, Filipe e Marcio fogem de histórias resumidas às experiências sexuais dos protagonistas. Procuram sempre criar personagens que lidam com outros dilemas, o que os enriquece como seres humanos.
— Todos os personagens que criamos são retratados na perspectiva da sexualidade, mas também em perspectiva com outros temas, como o mundo capitalista em que vivem, seus trabalhos, as estruturas familiares. Todas essas nuances são essenciais. A vivência do LGBT+ não se resume só à esfera sexual — reforça Filipe.
Uma discussão que se faz no atual momento do cinema com essa temática é se elenco e produção não deveriam ser formados por gays, lésbicas e trans, o que daria maior veracidade à narrativa. Denilson acredita que a experiência de vida não é garantia de performance na frente das câmeras:
— É importante que haja gays, lésbicas e trans atuando no mercado cinematográfico, inclusive, interpretando personagens héteros e cisgêneros. Agora, achar que uma pessoa, por ser gay, lésbica ou trans vai ser mais capaz de viver um personagem LGBT+, não é verdade. Na academia, não precisa ser gay, lésbica ou trans para estudar identidade de gênero. O campo da arte é o campo de encenação, do artifício.
Filipe e Marcio concordam que escolher um elenco LGBT+ não deve ser obrigatório para um filme queer de qualidade. Contudo, observam que esses atores, por serem excluídos de produções que não tratam de temáticas de gêneros, podem acabar ficando sem qualquer espaço.
— Muitos atores, uma vez que se assumem publicamente como LGBT+, acabam sendo desconsiderados para outros papéis que fogem daquela identidade LGBT+. Isso precisa ser levado em consideração na hora de compor um casting. Se eles não podem representar suas próprias identidades e são vetados de representar outras identidades, então estamos excluindo de vez esses profissionais do mercado — considera a dupla.
Glossário
- Cinema LGBT+: filmes com personagens gays, lésbicas e trans, mas não necessariamente questionadores
- Cinema queer: além dos personagens LGBT+, há um questionamento do status quo