É uma crônica paulista, mas também uma narrativa drasticamente brasileira. São três amigos que estão sendo expulsos do prédio que habitam, onde passaram os dias mais felizes de suas vidas. Um deles assente: "Deus dá o frio conforme o cobertor". É a história do samba Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, que virou filme e chega aos cinemas nesta quinta-feira (21).
Dirigido por Pedro Serrano, o longa adapta não só a canção de Adoniran, mas transpõe também o universo de sua obra, com personagens e histórias se entrelaçando. Há elementos de variados sucessos do músico, como Trem das Onze, Joga a Chave, Samba do Arnesto e até Iracema ganha vida pela atriz e cantora Leilah Moreno.
Saudosa Maloca não é uma cinebiografia do compositor, mas sim um trabalho de ficção com mescla de drama e comédia. O projeto foi construído por meio daquilo que Adoniran contava em suas letras, engendrando também uma moldura saudosista de São Paulo.
— Era uma abordagem que me interessava mais desde o início. A fagulha acendeu quando ouvi o samba e vi ali que havia uma grande história, com personagens fortes que as pessoas têm relação afetiva. É uma história sobre a cidade, que vale a pena ser contada — sublinha Serrano, que estreia na direção de um longa de ficção.
Saudosa Maloca surgiu como curta, intitulado Dá Licença de Contar. Lançada no Festival de Cinema de Gramado, em 2015, a produção foi contemplada nas categorias de melhor filme – júri da crítica e Prêmio Aquisição Canal Brasil. Segundo Serrano, a receptividade que o curta teve no evento o impulsionou para fazer virar um longa — tanto por parte do público quanto na parte comercial, com realizadores interessados em viabilizar a expansão.
De lá para cá, o diretor lançou o documentário Adoniran, Meu Nome é João Rubinato em 2020. Ele frisa que esse filme surgiu como uma possibilidade de oferecer uma narrativa biográfica, ao contrário da ficção que trabalhava. O diretor observa que uma produção é complementar à outra, tudo dentro de um projeto só.
Assim como o curta, Saudosa Maloca é protagonizado por Paulo Miklos, que interpreta Adoniran. O ponto de partida é um bar, onde o compositor, em idade avançada, recorda episódios de uma antiga São Paulo para um jovem garçom chamado Cicero (Sidney Santiago). Conforme Serrano, os flashbacks são ambientados nos anos 1950, mas há uma licença para ser um passado que possa ter elementos da década de 1930 ou 1960.
O músico traz causos que vivenciou na maloca, que compartilhava com Joca (Gustavo Machado) e Mato Grosso (Gero Camilo), personagens da música que dá título ao filme. Há também reflexões de uma cidade que está sendo atropelada pelo progresso, além dos primeiros passos de sua carreira musical.
Como o filme se propõe a realçar o eu-lírico do músico em suas letras, Miklos pôde elaborar Adoniran com liberdade poética. O ator e cantor descreve o personagem como alguém que resiste ao tempo, que parece querer dizer a todo momento: "Eu sou de outra época".
— Não é necessariamente o Adoniran que aparece em filmes ou gravações dos programas de TV. Não precisava emular a voz e os trejeitos dele. Pude fazer algo mais sutil e livre — relata Miklos.
Em relação a Mato Grosso e Joca, que pouco se sabe a respeito de suas reais existências, o diretor aponta que os dois foram trabalhados como alter egos de Adoniran, expressados em sua obra. Se o primeiro serve como um representante clássico do Brasil, imigrante de outro Estado que foi a São Paulo fazer a vida, Joca ilustra o lado italiano do músico (filho de um casal vindo da Itália). Há momentos cômicos da dupla com suas malandragens, mas, principalmente, se estabelece uma relação paternal do compositor com os parceiros de maloca.
— Mato Grosso e Joca trazem uma infantilidade de quem não quer aceitar a vida séria, do progresso, que se recusa a entrar no tempo moderno. Não querem saber de trabalho, de entrar em uma lógica de linha de produção. Querem viver em uma outra frequência — explica Serrano.
Confira o trailer do filme:
Atemporal
Adoniran Barbosa era o nome artístico de João Rubinato, que nasceu em Valinhos (SP) em 1912 (diz ele que a família alterou a certidão para 1910, assim poderia trabalhar em uma fábrica). Ao longo dos 80 anos que viveu, passou por diferentes trabalhos, como entregador de marmita, tecelão, balconista, pintor de paredes, garçom e ator. Seu lado compositor se intensificou nos anos 1950, quando teve início sua parceria com o conjunto Demônios da Garoa. Só lançaria trabalhos solos em que cantaria as próprias composições a partir dos anos 1970.
Parte das composições de Adoniran apresentam crônicas de camadas populares e desprivilegiadas, espelhando nuances da desigualdade social de uma cidade grande. E essas questões da obra do músico aparecem no filme: ocupação, gentrificação, especulação imobiliária e fome. Ou seja, temas que ainda são atuais.
— Tem o empreiteiro que vai assediando as pessoas, com a força da grana, que ergue e destrói coisas belas — diz Miklos. — A vizinhança vai se transformando, e eles sofrem esse processo. A canção Saudosa Maloca é sobre uma ocupação de um prédio abandonado.
Onde ver Saudosa Maloca em Porto Alegre?
- CineBancários (19h)
- Sala Eduardo Hirtz (14h30)
- Espaço Bourbon Country 8 (21h)