Jafar Panahi, nome fundamental do cinema iraniano contemporâneo, é um mestre em desorientar a crítica. Seus filmes costumam arrancar leituras distintas e, não raro, conflitantes. Muitas vezes são tratados como essencialmente documentais, autobiográficos e militantes, registros puros de uma realidade política externa, enquanto outros reivindicam que a estética naturalista é nada mais do que uma estratégia, e atentam para as marcas explícitas da intermediação de seu criador. É assim ao menos desde O Espelho (1997), e a emblemática passagem em que a atriz mirim que encarnava a personagem principal decide abandonar as gravações. Real ou roteirizado? A dúvida, e as reflexões permitidas a partir dela, são o mote da obra deste ex-assistente e discípulo de Abbas Kiarostami.
Em Sem Ursos, que estreou em Porto Alegre na quinta-feira (18), Panahi interpreta a si mesmo, o que vem ocorrendo em todos os seus trabalhos recentes, desde que a trajetória dele foi atravessada, no início da década passada, por uma sentença autoritária que o proibiu de sair do país e de fazer filmes. Entre detenções temporárias e greves de fome, Panahi desafiou a repressão e já lançou, clandestinamente, cinco festejados longas-metragens, que estão entre o que de mais interessante se produziu no mundo nos últimos anos.
Após rodar dentro de um apartamento, mostrando o filme que gostaria de fazer mas não podia (em Isto Não é um Filme, de 2010), e no interior de um carro de táxi que circula recolhendo pessoas pela capital (em Táxi Teerã, de 2015), agora Panahi surge instalado em um vilarejo rústico contíguo à Turquia, regendo, por meio de videochamadas, um set de gravação do outro lado da fronteira.
Tal qual Kiarostami em sua Trilogia de Koker, a obra é cheia de camadas. O Panahi que aparece na tela é estimulado pelos colegas a cruzar a linha divisória, desrespeitando a vedação judicial a que está sujeito, para assumir as rédeas da filmagem e gozar de mais liberdade, mas ele hesita. No filme que está dirigindo remotamente, por sua vez, um casal representa a própria batalha para deixar um país por vias não legais. Um movimento pendular entre o ficcional e o não ficcional que testa os limites do cinema e é uma espécie de marca da cinematografia iraniana a partir da década de 1980.
Embora tudo funcione bem, não há exatamente uma novidade. Afinal, o mise en abyme ("filme dentro do filme") já foi explorado à exaustão por Panahi e outros. Ainda que impactante e bem feito, o momento em que a atriz envolvida na gravação se volta para a câmera e anuncia que não quer continuar por não concordar com os rumos que o filme está tomando, soa como um deja vu tanto da mencionada passagem da garota de O Espelho quanto do próprio Panahi afirmando, em Isto Não é um Filme, que aquela gravação estava "virando uma mentira".
Panahi também revisita, em Sem Ursos, o questionamento às tradições das profundezas do país, como havia feito em seu trabalho anterior, o excelente 3 Faces (2018). Desta vez, ele entra em rota de colisão com a população do vilarejo quando é pressionado a fornecer uma fotografia que teria feito de um jovem casal apaixonado. A moça em questão estava prometida desde que nascera para outro rapaz e a foto seria a prova da "traição".
Talvez esteja aí o grande mérito do filme — que, se não surpreende em originalidade, não deixa de ser envolvente neste criativo jogo metalingústico —, para além de, em certa medida, documentar a atual fase do martírio de Panahi, que deixou o Irã no mês passado pela primeira vez em 14 anos. Mérito esse que está na reafirmação do poder da imagem. No caso do Panahi-personagem, uma foto reveladora de uma verdade que desestabilizava os pilares daquela comunidade e seus costumes arcaicos, e podia determinar o destino de duas pessoas que desejavam apenas a liberdade de amar.
O próprio filme, no entanto, é a renovação de um ato de afirmação frente a uma violência institucional. Panahi dá o recado de que, enquanto tiver uma câmera ao seu alcance, seguirá trilhando o seu caminho, desnudando as mazelas de um país milenar e suas contradições. Ainda que hajam ursos à espreita.