Por Fatimarlei Lunardelli
Crítica e pesquisadora de cinema, professora na Unisinos
Raros cineastas foram tão exigentes sobre as possibilidades do cinema quanto o russo Andrei Tarkovski: para ele a questão não é apenas sobre possíveis maneiras de filmar, mas como as escolhas da direção “recriam a vida” para fornecer ao espectador uma experiência intensa e profunda de conhecimento do mundo. Em torno dessa ideia-chave construiu uma extraordinária filmografia de apenas nove títulos – projetos artisticamente ambiciosos – agora restaurados pelos Estúdios Mosfilm pelas comemorações de 90 anos de seu nascimento, em 4 de abril de 1932, na aldeia Zavrazhye, na Rússia. Parte desses filmes está em exibição na mostra Tarkovski – 90 Anos, em cartaz a partir desta quinta-feira (28/7) na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre.
Tarkovski demorou em se decidir pelo cinema. Por influência da mãe, que o preparou para ser artista, estudou todas as artes e teve uma passagem pela Academia de Ciências antes de ingressar, em 1954, no Instituto de Cinematografia, fundado durante a Revolução Russa, em 1919, no qual Lev Kulechov foi diretor. Ao contrário da escola soviética da montagem, baseada no princípio da fragmentação do plano fílmico, Tarkovski foi no sentido contrário ao defender a duração como valor máximo da arte cinematográfica. Todos os filmes que realizou foram radicalmente confrontados com esse princípio sobre o qual refletiu no livro Esculpir o Tempo (Ed. Martins Fontes, 1998), obra de referência nos estudos de teorias do cinema. Assim como o escultor toma blocos de mármore, o cineasta cria sobre “blocos de tempo” nos quais dispõe acontecimentos preservando a integridade da dimensão temporal em que se desenrolam. Em seus filmes, os planos são longos e expressam a consciência dramática da finitude da existência.
O Estado socialista no qual se criou propunha um homem novo, mas Tarkovski está mais próximo de Dostoievsky do que de Eisenstein. No único Estado oficialmente laico da história, filmou com um sentido religioso profundo e a certeza de que o artista nunca é livre. O mercado pode ser tão implacável quanto a ideologia, e ele sofreu restrições nos dois sentidos. Foi sob a égide do controle e da censura que filmou Andrey Rublev (1966). Através da vida do monge que viveu no século 15 e se transformou no maior pintor de ícones da história da arte russa, o filme trata sobre liberdade artística, política, religião e autoritarismo e por isso foi proibido. Uma versão foi exibida e ganhou o Prêmio Fipresci (da crítica internacional) no Festival de Cannes de 1969, outra foi liberada com cortes na União Soviética e, quando o filme foi lançado nos Estados Unidos, em 1973, foi cortado por razões comerciais. A versão restaurada pelo Mosfilm, incluída na mostra da Cinemateca Paulo Amorim, é uma oportunidade única de ver a obra na íntegra, como foi concebido pelo diretor.
Embora não seja um argumento original, Solaris (1972), ficção científica adaptada do romance homônimo do escritor polonês Stanislaw Lem, permite ao cineasta examinar o papel das lembranças na vida humana. Cientistas de uma estação espacial sofrem os efeitos de um enigmático oceano no qual a plataforma está envolta e passam a ter visões com pessoas queridas já falecidas. Em O Espelho (1975), a memória do cineasta é a própria matéria-prima do roteiro baseado em sua infância difícil durante a guerra, quando foi morar no interior e passou um ano na cama se recuperando de tuberculose. É sua obra mais autobiográfica. Nas lembranças de um homem a imagem da mãe que criou sozinha os filhos se sobrepõe ao da esposa e o cotidiano em família se mistura com imagens de arquivo da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial.
Passado e presente não se distinguem, e tudo acontece num tempo indistinto pleno de beleza e emoção. A narrativa de O Espelho é permeada por poemas escritos e narrados por seu pai Arseny Tarkovski, cultuado poeta russo do qual herdou a riqueza lírica e a energia espiritual que imprimiu nos filmes.
Tarkovski morreu aos 54 anos, em decorrência de um câncer, em 1986, em exílio imposto pela União Soviética, que proibiu seu retorno à Rússia depois de uma viagem à Itália, onde foi completar o roteiro que escrevia com o amigo de longa data Tonino Guerra. Seus últimos filmes, Nostalgia (1983) e O Sacrifício (1986), foram financiados por produtores europeus. Em ambos trata sobre renúncia, tema que lhe era caro, pois considerava a arte um imperativo ao qual o artista devia a missão espiritual de submeter-se. Em nenhum sentido acreditava que um artista pudesse ser livre, e dedicou sua vida à tarefa de extrair do cinema sua potência máxima como arte.
Tarkovski – 90 Anos
Em cartaz durante uma semana, até a próxima quarta-feira (3/8), na Sala Eduardo Hirtz da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. As exibições são sempre às 19h, com cópias restauradas e digitalizadas dos filmes de Andrei Tarkovski (1932-1986). Veja a programação em cinematecapauloamorim.wordpress.com e nas redes sociais da Cinemateca Paulo Amorim