Pode ser um clichê, mas não é impreciso afirmar que, com a morte de Kirk Douglas (1916–2020), na noite de quarta-feira (6), chega-se ao fim de uma era. Morto aos 103 anos de idade, Douglas era um dos últimos exemplares ainda vivos de um tipo de astro moldado por sua era, a dos grandes estúdios de Hollywood e seu star system, a máquina publicitária de produzir estrelas “maiores do que a vida” para encantar o público.
Nascido Issur Danielovitch, filho de imigrantes judeus russos, Douglas, com seu carisma e seu rosto de traços fortes, tornou-se galã e, mais tarde, um astro de ação em produções de guerra, faroestes ou filmes de época como Vikings ou Spartacus. A própria mudança de seu nome de nascimento para algo mais próximo do público americano mostra um pouco de como funcionava o star system então em vigor (algo que também pode ser visto, em parte, na produção Judy, sobre a vida de Judy Garland, em cartaz na Capital): um produtor poderoso moldava atores e atrizes, do nome à aparência, para torná-los mais próximos de um “ideal americano” .
Ator de uma época em que ainda não havia se tornado popular a pesquisa intensa e a transformação corporal de papel a papel que são moda hoje, Douglas, como outros astros de sua geração, como Gary Cooper, Humphrey Bogart ou James Stewart, atuava dentro de um registro mais restrito. No auge de sua carreira, seus personagens eram mais um “tipo” associado a uma figura ideal de masculinidade. Ele mesmo admitiria em uma entrevista concedida em 1969 ao crítico Roger Ebert que fez muitos filmes por pressão dos estúdios ou de seus agentes.
— Com muita frequência não fui o que queria ser, sucumbi às pressões. As coisas que fiz e gostei, sempre fiz contra conselhos. Todos os filmes ruins, todos deram força. Os bons filmes, eles me aconselharam contra.
Era um mérito de Douglas, contudo, que sua forte presença na tela vendesse de forma convincente o homem másculo que ele encarnava com tanta frequência, embora nem todos estivessem dispostos a aceitá-lo. A impiedosa crítica de cinema Pauline Kael sempre teve um famoso pé atrás contra o ator.
Político
Ao mesmo tempo em que foi um dos mais emblemáticos astros da era de ouro de Hollywood, Kirk Douglas também antecipou muitas tendências que pautam atores modernos na indústria do cinema. Ele foi um dos artistas que, insatisfeitos em seguir instruções de executivos e agentes de relações públicas, começou a produzir seus próprios filmes. Um processo que começou gradualmente, em 1955, com ações não creditadas em obras como A Um Passo da Morte (1955) e Desejos Ocultos (1957). Em 1960, ano da filmagem de Spartacus, Douglas já tinha tanto poder como produtor executivo que demitiu o primeiro diretor contratado para o filme, o veterano Anthony Mann. Bancou, então o que considerava o “sangue novo” da indústria, Stanley Kubrick, então com pouco mais de 30 anos, com quem o ator já havia trabalhado no drama de guerra Glória Feita de Sangue, de 1957.
Spartacus é um dos filmes em que o notório controlador Kubrick teve de abrir mão de muitas de suas demandas em favor da vontade de Douglas. O ator também também antecipou a figura bastante contemporânea do astro que usa seu cacife em nome de uma causa. Para ter Kubrick em Spartacus, Douglas afrontou as preocupações do estúdio Universal com o quanto uma grande produção poderia render nas mãos de um jovem notório provocador e anti-establishment. Era exatamente o tipo de característica que Douglas queria para um filme sobre um líder revolucionário.
Douglas também ajudou, com seu considerável prestígio, a acabar com a infame “lista negra” de Hollywood, adotada para responder às pressões do macarthismo dos anos 1940 e 1950 sobre trabalhadores da indústria do cinema com ligações com o comunismo. Ele brigou para que o roteiro de Spartacus trouxesse a assinatura de Dalton Trumbo, seu amigo, que havia uma década só conseguia trabalho por baixo dos panos, assinando roteiros com pseudônimos – história narrada no longa Trumbo, de 2015 (em que Douglas é interpretado por Dean O’Gorman, de O Hobbit).
15 grandes atuações
- O Invencível (1949)
- A Montanha dos Sete Abutres (1951)
- Assim Estava Escrito (1952)
- 2000 Léguas Submarinas (1954)
- Ulysses (1954)
- Sede de Viver (1956)
- Sem Lei e sem Alma (1957)
- Glória Feita de Sangue (1957)
- Vikings: Os Conquistadores (1958)
- Duelo de Titãs (1959)
- Spartacus (1960)
- A Fúria (1978)
- Cactus Jack: o Vilão (1979)
- Os Últimos Durões (1986)
- Os Puxa-Sacos (1999)