A crise criativa de Hollywood fez com que explodissem remakes, sequências e spin-offs, que tiveram no universo oitentista uma de suas fontes mais recorrentes. Parecia que Blade Runner (1982), a obra-prima de Ridley Scott, tinha escapado da febre que ganhou corpo nos primeiros anos deste século 21. O retorno ao fascinante universo distópico inspirado na obra de Philip K. Dick demorou, e não só isso: chega aos cinemas, nesta quinta-feira, confirmando uma sensação despertada desde o princípio do projeto, a de que se trata de um filme especial, diferente – sob diversos aspectos.
Ao mesmo tempo uma grande aposta da indústria (o custo estimado da produção é de US$ 185 milhões), a trama de arrastados 163 minutos de duração apresenta planos longos, alguns intermináveis e em boa parte abertos, revelando paisagens totalmente distintas das do original, além de apostas arriscadas de profundidade de campo que nada têm a ver com a sensação de claustrofobia incitada pelo visual trash-melancólico do longa de 1982.
Não é apenas o fato de que a vida em 2049, ano em que se passa a nova trama, seja outra, na comparação com o 2019 vislumbrado três décadas e meia atrás. Dennis Villeneuve (de Incêndios, Sicário e A Chegada), o diretor escolhido a dedo por Ridley Scott e a Sony/Columbia para a empreitada, ousou muito mais do que o padrão em projetos desse tamanho. Agregou a um imaginário estabelecido (e largamente cultuado) ideias e informações novas, algumas destas apresentadas seguindo a cartilha de um realismo em geral rejeitado pela indústria dos superblockbusters. Eis o primeiro dos paradoxos de Blade Runner 2049.
O segundo: a história pode, em linhas gerais, repetir o original (um policial, interpretado por Ryan Gosling, vive caçando Replicantes, os mutantes rebeldes criados em laboratório), mas seu desenvolvimento se dá de maneira radicalmente mais pobre do que aquela conduzida por Scott em 1982. Quem for ao cinema encontrará apelos à memória afetiva (é claro que o protagonista do primeiro longa aparecerá, mais velho e novamente vivido por Harrison Ford), algumas piadas para quebrar o clima (haverá críticos dizendo que há humor no filme, embora ele esteja reduzido a uma ou outra cena que pouco acrescentam ao clima geral) mas, lá pelas tantas se dará conta, o que está em jogo é, no fundo, uma batalha tola do bem contra o mal.
Do bem contra o mal ou, se você preferir, do mocinho (Gosling, associado a Ford) contra o bandido. Poucos títulos recentes de Hollywood trabalharam tão mal seus vilões, por sinal. No longa original, havia o cientista Tyrrel – só que o personagem morreu, aliás, assassinado pelo Replicante-em-chefe Roy, um vilão nuançado e carismático. De modo que, agora, foi preciso criar um criador substituto dos Replicantes – Wallace, personagem encarnado por um andrógino Jared Leto que é uma espécie de herdeiro maligno do legado de Tyrrel. Acontece que Wallace, além de aparecer pouco, é deixado de lado no meio da trama. Quem de fato se transforma na antagonista, neste novo filme, é Luv (Sylvia Hoeks), Replicante cuja aparência remete à de Rachael, par romântico, por assim definir, do protagonista do primeiro longa.
Essa pequena confusão revela outro paradoxo de Blade Runner 2049: se sob certo aspecto há a complexificação dos papéis de cada um (a vilã de agora emula a mocinha de antes), por outro lado, conforme a ação se desenrola, as nuances desaparecem até que sobrem apenas os arquétipos mais convencionais – que, como nos filmes de ação mais banais, enfrentam-se em um final eletrizante (aí sim, com planos mais curtos, montagem mais ágil, tensão nas alturas etc.).
Algumas sequências do longa dirigido por Dennis Villeneuve são muito inspiradas – paradoxalmente. Você ficará impressionado não apenas com as panorâmicas da vida em um planeta devastado, mas com certas interpretações em forma de imagens bastante ricas do que essa vida, na maneira com que está posta, suscita. Um exemplo é o sexo entre o protagonista e sua robô de estimação (Ana de Armas), que tenta alcançar a sensação de ser humana chamando à transa uma enigmática jovem de cabelos descoloridos (Mackenzie Davis). Trata-se de uma forma de demonstrar algo que está no cerne da a matriz literária e que fora tão bem transposto para a linguagem audiovisual em 1982, que é a questão sobre o que, em um contexto de automação e desenvolvimento acelerados, nos faz, de fato, humanos.
Sob certo aspecto, Ridley Scott respondeu ao paradoxal "fator humano" com uma dúvida – seria seu protagonista, vivido por Harrison Ford, um Replicante? No novo filme, há mais (tentativas de) respostas do que perguntas. Inclusive sobre "o que é" o personagem de Ryan Gosling. Blade Runner 2049 é um bom filme. Mas com hype desproporcional. Se não se incomodasse tanto com as questões em aberto, se buscasse perguntar mais e responder menos, seria melhor.
BLADE RUNNER 2049
De Dennis Villeneuve
Ação/ficção científica, EUA, 2017, 163min, 14 anos.
Em cartaz no circuito de cinemas, em cópias 3D, convencionais, dubladas e legendadas.
Cotação: bom.