Um dos filmes mais interessantes em cartaz em Porto Alegre é Glory, drama búlgaro dirigido por Kristina Grozeva e Petar Valchanov. É o relato das agruras de um ferroviário (Stefan Denolyubov) que, ao encontrar uma fortuna nos trilhos, avisa à polícia e se torna parte de um circo midiático armado por uma RP (Margita Gosheva) para desviar o foco de denúncias de corrupção. Por e-mail, os diretores concederam a seguinte entrevista.
Seu filme lida com temas bem reconhecíveis aqui no Brasil e em outras nações do antigo "terceiro mundo": corrupção, estratégias para desviar a atenção pública, a arrogância desumana da burocracia. A corrupção é uma questão universal?
Acreditamos que sim. Apenas o modo como ela se manifesta difere. Enquanto a corrupção flagrante e escancarada é típica de – como você disse – sociedades do terceiro mundo, a corrupção mais obscura, de bastidores e, bem, mais esperta, é aplicada nos países desenvolvidos.
O principal conflito no filme começa quando Julia, a profissional contemporânea de um mundo hiperconectado, perde o relógio de Petrov, um relógio clássico, antigo e confiável como seu proprietário. É um choque simbólico de dois mundos?
Sempre imaginamos que o antigo relógio "Slava" de Petrov seria um símbolo, mas foi só ao desenvolvemos a personagem Julia (na primeira versão do roteiro, era um homem, e mais plano), que o choque se tornou simbólico. Foi aí que soubemos que havíamos estabelecido de forma correta o conflito.
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Qual a origem da trama? O enredo foi de alguma forma baseado em algo específico do noticiário búlgaro?
Cerca de 15 anos atrás, um operário de manutenção ferroviária encontrou uma bolsa cheia de dinheiro nos trilhos e informou a polícia. Isso imediatamente se tornou notícia. Enquanto algumas pessoas de sua comunidade o ridicularizavam por não ter pego nada para si, o Ministério dos Transportes o declarou um herói, concedeu-lhe um diploma honorário e um relógio eletrônico vagabundo, que parou de funcionar duas semanas depois. Curiosamente, isso também virou manchete: "Prêmio do herói para de funcionar". É mais ou menos aí que a história real termina e a ficção começa. Alguns anos depois, o ferroviário confessou em uma entrevista que, se encontrasse aqueles milhões hoje, simplesmente se afastaria e deixaria outra pessoa lidar com aquilo. A amargura dessa confissão nos deu o impulso adicional para explorar o pano de fundo daquelas manchetes.
Histórias como a de Petrov são comuns no jornalismo: pessoas honestas que viram notícia por seu caráter e comportamento incomuns em uma situação da qual poderiam tirar proveito. Transformar a honestidade em espetáculo é um dos problemas contemporâneos?
Parece que sim, de uma forma ou de outra. Por exemplo, a maioria dos reality shows dos últimos anos tem promovido uma estética plástica e falsa, enviando às crianças (e a seus pais) a mensagem de que você tem que ser falsamente positivo e amparado em clichês para ter alguma chance de se tornar famoso. A autenticidade parece estar fora de moda. Esse é um aspecto. E então há as maquinações políticas, a grande máquina clandestina. Na Bulgária, você dá por certo que todos, enquanto estiverem de alguma forma envolvidos na política, roubam. Isso se espalhou como um câncer em todos os serviços relacionados com o Estado, como educação, saúde etc. A corrupção tornou-se o status quo, a condição normal, e a honestidade é um desvio.
Em Glory vocês voltam a trabalhar com Margita Gosheva, com quem fizeram A Lição. Em um filme como este, imagino que seja necessária uma parceria estreita entre diretores e elenco, não?
Como mencionamos antes, o personagem de Margita deveria ser masculino na primeira versão do roteiro. Quando decidimos mudar isso, Margita foi automaticamente nossa primeira e única escolha. Você está certo, estreitas parcerias entre diretores e elenco – no nosso caso, já se tornou uma amizade – ajudam muito se você quiser criar uma performance autêntica e íntima. Temos com Margita um relacionamento de confiança, construído ao longo dos anos de trabalho em conjunto. O mesmo vale para Stefan Denolyubov e, na verdade, para a maioria do elenco e da equipe.
A construção do filme, as situações, têm um sabor claro de sátira, mas o tom é tão seco e documental que tudo na tela parece mais brutal e trágico. Foi uma escolha consciente misturar esses dois modos de expressão para aumentar o impacto?
Gostamos de manter as coisas em terreno firme, permanecer perto da realidade e deixar o absurdo da própria situação fazer todo o trabalho. E também há necessidades práticas, limitações orçamentárias etc., que nos ensinaram uma certa economia, não apenas em termos de escala de produção, mas também de estilo. Além disso, se você tentar melhorar a sátira estilisticamente, corre o risco de virar o fio para o território da farsa, e não queríamos isso, faria as coisas parecerem menos graves do que são. Acredite, ainda não é um equilíbrio fácil, mesmo nesse tom seco.