Poucas vezes o cinema captou com tamanha intensidade o processo de decrepitude, agonia e fim da vida como o que se vê em A Morte de Luis XIV, filme do diretor espanhol Albert Serra que entrou em cartaz na Cinemateca Capitólio – é a primeira estreia regular no espaço agora equipado com projeção digital.
Com um registro que faz pulsar na tela o belo e o mórbido, Serra encena os penosos últimos dias do rei da França, monarca com o mais longo reinado no mundo ocidental – governou oficialmente por 54 anos, período ampliado para 72 anos se contado seu direito ao trono, ainda criança, assegurado em 1643 pela morte do pai, Luis XIII.
A proposta cenográfica de A Morte de Luis XIV remete ao tableau vivant, um quadro vivo que segue, na luminosidade, na composição dos planos e na paleta de cores, referências pictóricas de pinturas do período, como o célebre retrato do protagonista assinado por Hyacinthe Rigaud, em exposição no Museu do Louvre, em Paris.
O filme se passa em agosto de 1715, dentro do quarto do Palácio de Versalhes em que o rei convalesce da gangrena que lhe consome a perna esquerda e mina sua resistência – morreria em 1º de setembro, dias antes de completar 77 anos. Médicos da corte discutem as melhores alternativas de tratamento, tanto com a ciência da medicina conhecida à época quanto com o elixir de um reconhecido charlatão. Súditos comemoram os mínimos sinais de recuperação, como um biscoito trabalhosamente mastigado ou um gole de vinho com esforço excruciante. Conselheiros buscam na sua derradeira lucidez o aval para decisões importantes que mantenham o reino funcionando. Sob a coroa de Luis XIV, a França viveu um apogeu político, econômico, militar, cultural e arquitetônico – Versalhes, nos arredores de Paris, e outras obras referenciais ainda hoje foram erguidas por ele.
Para interpretar o soberano conhecido como o Rei Sol, símbolo maior do absolutismo, brilha um patrimônio do cinema francês: Jean-Pierre Léaud, ator revelado ainda criança por François Truffaut, no marco da nouvelle vague Os Incompreendidos (1959), e acompanhado pelo diretor até a maturidade em outros quatro filmes. Léaud atuou também com Jean-Luc Godard em títulos como Masculino-Feminino (1966) e A Chinesa (1967).
A performance de Léaud é arrebatadora na sua contenção. A magnética conexão que o ator estabelece com a câmera se dá com gestos mínimos e, sobretudo, com as expressões do rosto do soberano que resiste ao ocaso. Luis XIV alterna instantes de resignação com arroubos de exaltação que destacam a frivolidade daquele mundo de aparências, como na sequência em que, apesar da urgência, exige dos servos que lhe sirvam água em copo de cristal. Mostra ainda a dimensão de seu legado na breve conversa que tem com o bisneto Luis XV, que o sucedeu com apenas cinco anos de idade. É um trabalho de atuação tão robusto que foi escolhido para laurear Léaud com a Palma de Ouro honorária do Festival de Cannes de 2016, em sessão especial do filme ovacionada por público e crítica.
O registro que Serra imprime é claustrofóbico, sombrio, com a iluminação rarefeita dos candelabros de velas colocando sob luzes e sombras a pompa de figurinos rebuscados e perucas bufantes. O fim se aproximando torna-se palpável na respiração ofegante, na fala pastosa do moribundo e nos ruídos das moscas rondando aquele corpo que se decompõe em vida. Pode-se até sentir o cheiro da morte sem que seja preciso nenhum recurso tecnológico acessório além de um bom diretor e um grande ator.
A MORTE DE LUÍS XIV
De Albert Serra
Drama, França/Espanha, 2016, 115min.
Em cartaz na Cinemateca Capitólio, às 20h.
Cotação: 5/5