Martin Scorsese não conseguiu fazer de Silêncio o grande e arrebatador filme que almejava apresentar desde os anos 1990 e que por tantas vezes postergou. Talvez por isso, e diante da morna recepção à produção, que passou batida na temporada de premiações, o diretor americano tenha dado declarações amargas sobre o futuro da arte pela qual é apaixonado e pratica como poucos. Scorsese disse temer pelo futuro das grandes histórias na tela do cinema, dado que a sala escura hoje só atrai as multidões do passado quando, em vez de grandes histórias, emula espetáculos que poderiam estar em um parque de diversões – consumidos por um público cada vez mais rarefeito no excesso de imagens em múltiplas plataformas.
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Lógico que esse amargor de Scorsese não seria o mesmo se Silêncio tivesse, por exemplo, ido além de uma discreta indicação aos Oscar de fotografia (assinada pelo mexicano Rodrigo Prieto) e obtido melhor resposta de bilheteria – recuperou no mercado doméstico apenas US$ 7 milhões de seu orçamento estimado em US$ 46 milhões, prejuízo a ser agora amortizado no lançamento internacional.
Enfim, o fato é que Scorsese elevou muito a régua na avaliação de seu trabalho, com o punhado de clássicos que tem no currículo e sua paixão cinéfila, e é com essa valiosa obra pregressa em perspectiva que cada novo filme seu, inevitavelmente, acaba concorrendo.
Silêncio adapta o livro homônimo lançado em 1966 pelo japonês Shusaku Endo, e nele Scorsese encontrou temas que lhe são muito caros: fé e violência, e como esses elementos impactam na formação tanto de um indivíduo quanto de uma nação. Endo, descendente de uma família católica, investiga no livro as raízes da religião que é minoria em seu país. Destaca episódios e personagens reais da perseguição empreendida no século 17 aos católicos evangelizados em massa pelas missões dos jesuítas portugueses ao longo de mais de cem anos. Na sequência de uma abertura do país feudal ao mundo exterior, uma reviravolta política colocou no poder governantes que buscavam purificar o Japão da influência estrangeira, cristalizada na presença dos missionários portugueses e seus fiéis seguidores.
As primeiras imagens de Silêncio, com cabeças humanas espetadas em estacas vistas a distância, remete a Apocalypse Now (1979), vigorosa adaptação de Francis Ford Coppola transpondo para a Guerra do Vietnã o livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad. Nesse cenário de horror, os protagonistas da trama também estão à procura de um Kurtz, no caso seu mentor há muitos anos desaparecido – e do qual não se sabe se está vivo, morto, aprisionado ou convertido pelo inimigo. Porque renegar sua fé e blasfemar imagens sacras era a alternativa dada pelos xoguns e inquisidores nipônicos para evitar um prolongado suplício físico e a execução. Barbárie, diga-se, como a praticada por cristãos na Inquisição na Europa e no processo de colonização das Américas, entre outras ocasiões.
Com essas dúvidas sobre o destino do já lendário padre Ferreira (Liam Nesson), chegam clandestinos ao Japão os jovens jesuítas portugueses Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield) e Francisco Garupe (Adam Driver). E logo percebem o perigo que os cerca. Aldeias são vasculhadas em busca de camponeses católicos e não demora os forasteiros terem suas cabeças colocadas a prêmio.
Scorsese imprime em Silêncio um tom épico messiânico que destaca Rodrigues como o mártir que será submetido às mais duras provações para seguir com sua missão. E tal qual Scorsese mostrou com Willem Dafoe encarnando Jesus em A Última Tentação de Cristo (1988), o noviço de Silêncio também viverá sua via-crúcis sob execração pública, cruzará com seu próprio Judas e se verá como o escolhido para levar adiante a palavra que seu deus lhe confiou espalhar. A provação espiritual torna-se tão excruciante quanto o flagelo físico – o espelhamento de Rodrigues em Jesus Cristo, aliás, é forçada sem sutileza pelo diretor. Há também em Silêncio ecos de Kundum (1997), em que Scorsese, abordou, também sem maior repercussão,a vida do líder budista Dalai Lama.
Em sua grandiloquência, Silêncio arrasta não apenas o peso de suas mais de duas horas e meia de duração. Causa um tanto de estranhamento o inglês tornando fluído um diálogo entre culturas estranhas que tinham o português como língua de contato – ok, é um filme americano, mas resulta demasiado artificial essa comunicação. Alguns dos personagem japoneses estão com registros por demais caricatos, impressão que o bom desempenho do elenco principal arrefece, sobretudo Garfield – tão bom ou melhor do que no papel em Até o Último Homem que lhe valeu uma indicação ao Oscar. Mas o que perdura em Silêncio é a sensação de que Scorsese não tinha muito a dizer sobre temas que ele mesmo e outros diretores já abordaram com mais inspiração – o próprio livro de Endo já havia sido adaptado em dois outros longas: Silence (1971), do japonês Masahiro Shinoda, e Os Olhos da Ásia (1996), do português João Mário Grilo.
Mas justiça seja feita a Scorsese: Silêncio pode não ser grandioso filme buscou fazer. Mas em seus bons momentos renova a fé no cinema como imorredouro veículo e templo de adoração coletiva.