Melhor filme do 10º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa, Travessia (2015) marca a estreia promissora no longa-metragem do diretor publicitário baiano João Gabriel. Em cartaz na Capital a partir desta semana, esse duro drama acompanha a ruína do relacionamento entre pai e filho, cada qual amargando a seu modo a ausência da mãe, tendo como pano de fundo uma Salvador noturna, urbana e cosmopolita – distante da imagem de cartão-postal ensolarada e praieira como a cidade é costumeiramente pintada.
Travessia começa com uma separação: a primeira sequência do filme mostra Júlio (Caio Castro) saindo do apartamento onde mora o solitário Roberto (Chico Diaz, melhor ator no Fest Aruanda), que permanece sentado no sofá da sala sem falar com o filho. O rapaz não se conforma que o pai tenha comprado um imóvel só para ele com o dinheiro herdado depois da morte da mãe. Um dia, após se embebedar e fracassar ao tentar contratar uma prostituta, Roberto acaba atropelando um garoto. Desesperado, ele coloca o menino no carro e o leva ao hospital. Apesar do socorro imediato, o personagem precisa prestar esclarecimentos na polícia e corre o risco de ser preso. Sentindo-se culpado, Roberto passa a visitar regularmente o menino e acaba envolvendo-se com a enfermeira Leila (Cyria Coentro). Paralelamente, o universitário Júlio está morando com a namorada Marina (Camilla Camargo) e sustenta-se traficando drogas sintéticas em festas eletrônicas badaladas.
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– Travessia é um projeto que vem sendo gestado há 10 anos. A história surgiu quando percebi no bairro em que eu morava em Salvador, que tinha um lado meio de submundo com prostituição, a presença de homens solitários buscando aventura. Acrescentei a isso a ideia de pai e filho vivendo um intermezzo, uma tentativa de conciliação. Chico e Caio caíram então como uma luva para os papéis – explica João Gabriel, falando por telefone com a reportagem de Zero Hora desde Salvador.
Depois de Travessia, o diretor de 37 anos diz que está com oito projetos em desenvolvimento, incluindo dois longas: Soprando Búzios, uma história de poliamor ambientada no Recôncavo Baiano que pretende rodar em 2018, e Intuição, drama policial sobre uma cientista de física quântica que se envolve com um estudante em Salvador. Nascido em Vitória da Conquista, mesma cidade de Glauber Rocha (1939 – 1981), João Gabriel confessa ter crescido sob a influência do ideólogo do cinema novo:
– Meu pai é contemporâneo de Glauber e desde os oito anos via os filmes dele. Ele me influenciou muito na linguagem de câmera, mais do que na temática em si.
Leia a entrevista com o ator Chico Diaz
O que motivou você a aceitar o papel em "Travessia"?
O próprio nome já diz: foi o desafio, nestes tempos de euforia e sucesso obrigatórios, de percorrer paisagens que atravessam nosso lado sombrio, doloroso, solitário, melancólico. Para um ator, é sempre interessante descobrir novas geografias. Acho bom a gente apresentar o complexo espírito humano em todas as suas facetas. Essa história de pai e filho é fundadora na sociedade, então eu achei que poderia trabalhar bem em tons mais escuros, graves. Fazendo uma analogia livremente, o filme também levanta a questão dos golpes que o destino nos dá e que o país inteiro está passando agora. De repente, a gente perdeu a bússola, ficou desorientado, como o Roberto com a morte da mulher. Como será nosso novo caminho? Como ator, acho que são acordes interessantes de tocar, a essa altura da minha carreira.
Chama a atenção sua atuação mais contida no filme.
A gente vai aprendendo a potencializar a expressividade e os sentimentos. Na vida cotidiana, não queremos mostrar as nossas fraquezas. Então, o trabalho se dá a partir do momento em que se tenta esconder e jogar para dentro as emoções. Quem sente a dor é o público, não o ator, que é só o instrumento.
O filme não explica muito como era antes a relação entre pai, mãe e filho. Esse passado foi trabalhado com os atores pelo diretor?
Essa curiosidade potencializa o drama, porque você fica querendo montar o quebra-cabeças e não conseguindo. A gente não trabalhou isso, acho que cada um inventou o seu passado. Essa fatalidade do destino impõe-se ao espectador, mas nós tivemos que explorar o subtexto. É um filme inteligente.
TRAVESSIA
De João GabrielDrama, Brasil, 2015, 90min.
Em cartaz no Cinespaço Wallig e no Espaço Itaú
Cotação: bom