O escritor Charles Dickens sabia das coisas: histórias sobre crianças órfãs têm um gigantesco potencial de comover o público. O tema, porém, é caborteiro: a mesma vocação para fazer as lágrimas jorrarem também pode afogar o juízo crítico e reduzir a experiência de ler um livro ou ver um filme a mera catarse de emoções. Nesta semana, entraram em cartaz na Capital dois títulos que conseguem desviar desse estelionato narrativo – coincidentemente, ambos na disputa do Oscar: a animação Minha Vida de Abobrinha e o drama Lion – Uma Jornada para Casa. Em sua estreia no longa-metragem de ficção, o diretor Garth Davis arriscou embrenhar-se na duvidosa senda do cinema de bons sentimentos adaptando o relato autobiográfico escrito pelo indiano-australiano Saroo Brierley – o livro foi publicado no Brasil pela editora Record. Saiu-se bem: indicado a seis estatuetas douradas, incluindo a de melhor filme, Lion abre mão de anabolizar a naturalmente já tocante trajetória do garotinho pobre que se perde da família no interior da Índia e acaba adotado por um casal da Austrália.
Lion é dividido em duas partes com a mesma duração de tempo. No primeiro ato, a trama acompanha o pequeno Saroo – vivido pelo adorável e carismático ator-mirim Sunny Pawar – desencontrar-se do irmão Guddu (Abhishek Bharate) enquanto ambos saem à noite para fazer biscates em uma estação ferroviária. Saroo termina dormindo dentro de um trem que vai para Calcutá, onde o menino de cinco anos tenta em vão retornar para casa. Sem saber o nome do local onde mora, distante cerca de 1,2 mil quilômetros de casa, o mirrado protagonista passa por desventuras em série nas ruas da cidade grande – lembrando a trajetória dos jovens personagens do oscarizado Quem Quer Ser um Milionário?. Depois de muito penar nas franjas da metrópole, Saroo vai parar em um orfanato, que posteriormente arranja sua adoção pelos australianos Sue (Nicole Kidman) e John Brierley (David Wenham).
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Na hora final de Lion, o enredo avança 20 anos, mostrando Saroo já crescido – interpretado agora por Dev Patel, ator que se destacou justamente em Quem Quer Ser um Milionário? e nos dois filmes da série O Exótico Hotel Marigold. Estudante de hotelaria, o jovem adulto tem um irmão problemático, o também adotado indiano Mantosh (Divian Ladwa), e namora a colega Lucy (Rooney Mara). O contato com estrangeiros, especialmente de seu país natal, desperta no protagonista a vontade de procurar a mãe e o irmão, dos quais nunca mais teve notícias. A trabalhosa pesquisa para descobrir seu lugar de origem mexe com Saroo, levando-o a questionar-se sobre sua identidade e a entrar em atritos com os pais adotivos e a namorada.
Além da sábia contenção da direção, que não manipula excessivamente a empatia do espectador, Lion tem a seu favor um excelente e homogêneo elenco, no qual desponta, além do moleque Sunny Pawar, a dupla Dev Patel e Nicole Kidman. Os dois intérpretes concorrem ao Oscar de ator e atriz coadjuvante, mas poderiam estar nas respectivas categorias principais – principalmente o inglês de ascendência indiana, cuja carreira promissora incluiu ainda a participação na série televisiva Newsroom. Mesmo não sendo uma produção excepcional, Lion – Uma Jornada para Casa vai além do melodrama choroso de rotina e faz jus ao espírito de seu depoimento sobre a angústia e a eventual felicidade de dividir-se entre duas culturas, duas famílias e duas vidas.
Seis indicações ao Oscar:
*Filme
* Ator coadjuvante
* Atriz coadjuvante
* Roteiro adaptado
* Trilha sonora
* Fotografia
LION – UMA JORNADA PARA CASA
De Garth Dennis. Drama, Austrália/EUA/Reino Unido, 2016, 118min, 12 anos. Cotação: 3 de 5.
Salas e horários
Cinemark Barra 3 (16h45, 19h30, 22h10), Espaço Itaú 3 (15h10, 17h30, 21h40), GNC Iguatemi 2 (16h45, 19h15), GNC Moinhos 1 (13h30, 16h, 18h30, 21h) e Guion Center 1 (15h05, 19h05, 21h15).