Com a morte do mestre Abbas Kiarostami (1940 – 2016), o diretor Asghar Farhadi tornou-se o nome mais incensado do cinema iraniano – uma produção descoberta pelo Ocidente em meados dos anos 1980 e que tem sido responsável por muitos dos melhores filmes vistos desde então. Vencedor do Oscar de filme estrangeiro e do Urso de Ouro do Festival de Berlim com A Separação (2011), Farhadi está de novo no páreo pela mais cobiçada estatueta do cinema internacional com O Apartamento (2016), que entrou em cartaz na Capital nesta semana. Como nos anteriores A Separação, À Procura de Elly (2009) e O Passado (2013), o cineasta e roteirista volta a exibir em O Apartamento o interesse por histórias ancoradas em dilemas morais e uma notável habilidade em dirigir atores em situações de conflito dramático.
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Prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, O Apartamento conta a história de um jovem casal de atores obrigado a abandonar o lar devido ao risco de desabamento de seu prédio. Enquanto preparam-se para levar ao palco uma versão da famosa peça A Morte do Caixeiro Viajante, Rana (Taraneh Alidoosti) e Emad (Shahab Hosseini, prêmio de melhor ator em Cannes) mudam-se para um apartamento no centro de Teerã, de propriedade de um colega de teatro. Ao chegar em casa uma noite, Emad descobre que Rana foi atacada por um homem – aparentemente, um cliente da antiga inquilina, que marcava encontros sexuais no apartamento. Enquanto Rana tenta esconder e superar o traumático episódio, Emad começa a procurar o autor da agressão em busca de vingança. O episódio acaba trazendo à tona sentimentos recalcados pelos protagonistas e realçando a ambiguidade dos laços que unem marido e mulher.
A exemplo de seus outros longas, Farhadi alicerça O Apartamento na construção psicológica de seus personagens, cujo caráter, objetivos e contradições vão aos poucos sendo percebidos pelo público – que se deixa envolver pela trama ao mesmo tempo intensa e corriqueira. Ainda que não proponha em sua nova obra uma preciosa radiografia da complexidade social e cultural iraniana como a que fez em A Separação, o realizador coloca em pauta em O Apartamento, ainda que secundariamente, temas pertinentes em seu país, como a prostituição – assunto tabu no Irã –, a submissão feminina, o conceito masculino de honra, o lugar da arte. A encenação do célebre texto de Arthur Miller (1915 – 2005), que entremeia a narrativa, suscita inevitavelmente paralelos: tanto o caixeiro norte-americano do espetáculo quanto seu intérprete iraniano têm dificuldade em encarar a realidade de suas vidas, tentando negar a estagnação existencial; já Rana, apesar do perfil emancipado e ocidentalizado, é no final das contas tão passiva quanto a cordata Linda, a esposa do protagonista que encarna na peça.
No entanto, para além de questões que dizem respeito à sociedade iraniana contemporânea, com sua peculiar articulação entre tradição e modernidade, O Apartamento escrutina a fragilidade como são erguidos os relacionamentos e, no ato final do filme, quando Emad é confrontado com suas motivações, coloca em perspectiva ética nossas noções de justiça e misericórdia, integridade e perversão, bondade e maldade. Mostradas logo no início de O Apartamento, as rachaduras nas paredes parecem anunciar que a ruína está à espreita no interior de todos.
O APARTAMENTO
Casal de atores vê sua vida se transformar após um incidente que envolve a mulher. Cotação: Muito bom
De Asghar Farhadi. Com Shahab Hosseini e Rana Etesami. Drama, 12 anos (Forushande). Irã/França, 2016, 125min.
Onde ver: Guion Center e Espaço Itaú