A ficção científica praticamente acompanha o cinema desde o nascimento, como prova a adaptação de Georges Méliès para Viagem à Lua, de Júlio Verne, realizada em 1902. A forma como os códigos narrativos do gênero foram sendo construídos ao longo dessa relação centenária ajudou a montar uma interessante linha do tempo de algumas das principais inquietações do momento em que determinada produção foi realizada. Um espelho de como vemos o futuro – e de como o tememos, no caso de algumas produções como o recente sucesso televisivo Black mirror, por exemplo.
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Talvez seja pela capacidade de apresentar, nas entrelinhas, as obsessões e dúvidas do imaginário social, que a ficção científica humanista no cinema passe por ondas, por vezes dando a impressão de que está em baixa ou que foi substituída em definitivo por aventuras escapistas focadas em luzes brilhantes e robôs engraçadinhos. Mas, sempre retorna, com questionamentos importantes sobre o que a humanidade espera de si mesma agora e no futuro. E da onda mais recente, que inclui produções como Gravidade ou Interestelar, talvez nenhuma encarne de modo tão completo os desassossegos contemporâneos como o ainda em cartaz A chegada – um filme sobre futuro e comunicação feito em uma época em que a comunicação é cada vez mais árdua e o próprio futuro voltou a ser incerto.
Adaptado de A história de sua vida, um conto denso e comovente do escritor sino-americano Ted Chiang, A chegada, dirigido por Denis Villeneuve, tem como protagonista a doutora em linguística Louise Banks, vivida por Amy Adams em uma interpretação ricamente nuançada. Na sequência de uma visitação alienígena, com o aparecimento de 12 naves elípticas espalhadas pelo planeta, Louise é chamada pelo exército americano para encontrar uma forma de se comunicar com os alienígenas, que nada têm dos humanoides vagamente alterados que povoam 90% dos filmes do gênero, representando, em vez disso, o resultado de um caminho diverso da evolução da vida saída do mar. Em um primeiro momento, os governos da Terra colaboram, e Louise e outros colegas cientistas trocam ideias por videoconferência. Mas logo as tensões imanentes da humanidade ameaçam romper a colaboração e substituir o interesse mútuo da humanidade e dos alienígenas por desconfianças e paranoia.
Sem que se avance muito sobre pontos que devem representar uma surpresa para o espectador (e se você não quiser ler nada, mas nada mesmo que entregue qualquer mínimo fragmento da história, o momento para largar este texto e ir ver o filme antes de concluí-lo é agora), o que torna A chegada uma produção tão original no atual panorama é justamente o que mais tem faltado a muito da ficção científica mainstream: imaginação ancorada em ciência de verdade. Louise é uma linguista, e como tal, faz sentido que uma teoria fundamental para o entendimento da trama seja uma hipótese da Linguística, a de Sapir-Whorf, que postula que os idiomas moldam modos de perceber a realidade. Levando essa teoria ao paroxismo, o filme (e o conto de Ted Chiang) imagina o que aconteceria com Louise ao aprender uma língua escrita em ideogramas em círculo, não lineares, nos quais o início da frase pode estar em qualquer ponto.
Mais não se aventa para não entregar demais reviravoltas importantes de enredo, mas aqui é interessante estender-se sobre a conexão do filme com seu tempo, e como, mais do que dialogar com nossos tumultuados dias, A chegada parece muitas vezes responder a eles. Grandes teóricos da contemporânea pós-modernidade já apontaram como a nossa própria percepção do tempo foi afetada pela sensação de "presente eterno" despertada pelo fim das grandes utopias e mesmo da proposta "fim da História" – Fredric Jameson, por exemplo, para quem o "pós-modernismo" era a manifestação da faceta tardia do capitalismo triunfante, aponta como a cultura de massa da mídia eletrônica funciona à base da rotação incessante de elementos desalojados no momento seguinte, quase numa descrição da própria escrita apresentada pelos alienígenas no filme. Já Zygmunt Bauman fala mais de uma vez, em seus livros sobre a "modernidade líquida" e seus aspectos, de como a sensação predominante em um mundo dominado pelo caráter incessante do consumo é uma vaga noção desmemoriada de "eterno presente". São questões que ressoam diretamente com a própria estrutura usada pelo filme, e que talvez apontem a qualidade de A chegada como uma FC "pós-moderna", uma ficção científica que é, em certa medida, cética sobre a capacidade da Humanidade de alterar seu próprio futuro.
Em outro eixo, o personagem de Amy Adams – uma protagonista memorável em um momento em que se discute mais espaço para as mulheres nas grandes produções de Hollywood – também parece escolhido com rara presciência para se conectar com a contemporaneidade. Embora Louise já seja uma linguista no conto original, publicado no fim dos anos 1990, faz todo sentido que seja ela que nos guie ao longo do filme. Em uma época de "pós-verdade", em que as convicções valem mais do que fatos e em que políticos se elegem fazendo campanha contra o que é estrangeiro e diverso e pode ameaçar a "integridade" de uma determinada cultura (contra o que é, em última análise, "alienígena"), é um triunfo do filme que sua personagem não apenas se abra ao conhecimento integral do outro, mas que se permita ser modificada radicalmente por ele.