Ricardo Darín não trabalha tanto assim como faz supor a constância com que seus filmes chegam ao afunilado circuito brasileiro. Neste ano de 2016, por exemplo, o astro argentino visto há pouco em Truman tem na folha de pagamento apenas Kóblic, uma das estreias desta semana em Porto Alegre. Essa percepção da onipresença de Darín, portanto, deve ser mais creditada ao carisma e ao talento deste grande ator, e aos bons filmes que costuma estrelar, do que propriamente a seu volume de produção.
Em Kóblic, Darín retoma a parceria com o diretor Sebastián Borensztein, com quem fez Um conto chinês (2011). E neste, como naquele, o ator vive um personagem melancólico atormentado por um trauma. Só que, em vez de um episódio passado que teve como cenário a Guerra das Malvinas – malfadado conflito com o Reino Unido em 1982 que jogou uma pá de cal na ditatura argentina –, o que assombra o personagem de Darín no novo filme é o presente.
A trama é ambientada em 1977, auge da feroz perseguição dos militares que um ano antes haviam tomado o poder com o golpe. Tomás Kóblic, personagem de Darín, é um oficial da Marinha encarregado de pilotar os famigerados voos da morte, que lançavam ao mar, ainda vivos, prisioneiros agonizantes e drogados vítimas de tortura. Movido por uma integridade moral e por um senso de humanidade que se colocam acima do dever hierárquico criminoso, Kóblic decide desertar e sumir do mapa. Deixa para trás um casamento morno e tenta recomeçar a vida anônimo na fictícia Colonia Santa Elena, lugarejo isolado do mundo onde um amigo de confiança lhe arruma trabalho como piloto agrícola para borrifar plantações.
Esse pano de fundo histórico é colocado como ponto de partida no sólido roteiro de Borensztein e Alejandro Ocon. Talvez as recriações dos voos da morte possam parecer por demais estetizadas e melodramáticas nas recordações que voltam como pesadelos para o protagonista. Detalhes, entretanto, que se diluem em um enredo que tem seu potente motor dramático no espelhamento entre aquele pequeno microcosmo em que se refugia Kóblic e clima de medo e vigilância vigente em toda a Argentina à época. É como se não houvesse ponto de fuga do terror.
Em Santa Elena, Kóblic logo entrará no radar do violento e corrupto chefe de polícia que passa a observar seus passos (vivido pelo ótimo Oscar Martínez, recentemente premiado como melhor ator no Festival de Veneza por El ciudadano ilustre, indicado pela Argentina a buscar uma vaga na disputada do Oscar de filme estrangeiro). Outra frente de suspense se abre no envolvimento do piloto a mulher do grotesco dono do posto de gasolina local (papel da espanhola Inma Cuesta). São dois personagens secundários bastante ricos em suas complexidades, e as diferentes percepções que têm sobre Kóblic ao longo do filme levam o filme vibrar em diferentes tensões, agigantando mais um sólido e cativante personagem apresentado por Darín.
Com maior ou menor eficiência, mas sempre de forma pertinente, o cinema argentino tem mostrado em produções dos mais diferentes gêneros que a selvageria que cobriu o país com sangue entre 1976 e 1982, deixando como saldo milhares de cadáveres e desaparecidos, não deve ser esquecida. Essa memória coletiva, aqui do lado, é levada bastante a sério e permanentemente reavivada para que não venha a se repetir.