Diretor gaúcho radicado em São Paulo, Cristiano Burlan renova no docudrama Fome sua parceria com o crítico e professor Jean-Claude Bernardet. Com 80 anos recém-completados, Bernardet consagrou uma trajetória acadêmica referencial no estudo do cinema brasileiro e vem trabalhando nos últimos como ator para diretores com quem comunga a paixão pelas experimentações e provocações estéticas e políticas.
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Em cartaz no Espaço Itaú 8, com sessão única às 18h40min, Fome é o terceiro longa que Burlan, autor do premiado e impactante documentário Mataram meu irmão (2013), e Bernardet fazem juntos – pelo menos outros dois estão a caminho.
Bernardet surge em cena como um mendigo que perambula pelas ruas de São Paulo, cidade que Burlan costuma transformar em personagem ressaltando dela a frieza cinza e a imponência que faz de seus habitantes anônimos na multidão. O personagem é um dos entrevistados da estudante vivida por Ana Carolina Marinho, que está realizando um trabalho sobre moradores de rua – entre eles, estão marginalizados reais que, no registro documental do filme, expõem, entre a resignação e a revolta, situações de solidão, abandono e invisibilidade.
Em áreas como o jornalismo e o cinema, são recorrentes trabalhos de campo como esse da jovem aluna, que buscam nessas pessoas que sobrevivem à margem da dignidade, por imposição ou, não raro, opção, ilustrar a brutal desigualdade social do Brasil. A imersão nesse universo rende histórias de elevada dramaticidade, em geral potencializadas por imagens em preto e branco, como as do filme.
Mas a garota questiona com seu professor as implicações éticas dessa aproximação que, afora inspirar a produção de textos emocionantes, não busca maior comprometimento com seus protagonistas. Como Burlan faz com seu filme. Fome, portanto, arrisca um mea culpa sobre a apropriação artística da miséria alheia. Artifício que se mostra uma armadilha por não dialogar de forma efetiva com a proposta narrativa que acaba se impondo.
Isso porque em suas andanças pela cidade, Bernardet vivencia situações que expõem tanto a visão dos outros sobre seu personagem, observado ora com comiseração, ora com repulsa, quanto passam a realçar as características de sua persona real – como na sequência em que esse mendigo é reconhecido na rua por um ex-aluno seu na USP com que travou acalorados debates sobre os rumos do cinema brasileiro e a quem justifica sua opção pelo isolamento social.
A performance do ator em torno de si mesmo parece ser o que mais interessa ao diretor que o reverencia. Esteticamente funciona muito bem, pois Bernardet é um tipo fascinante e de elevada riqueza intelectual. Com essa alternância de foco, a abordagem crítica e sempre pertinente sobre a desigualdade social no Brasil acaba sacrificada, e seus desvalidos representantes deixados pelo caminho.