Na intimidade dos recentes dramas familiares encenados por Anna Muylaert fervilham temas universais que a localização no Brasil circunda com uma abordagem social e, inevitavelmente, política. Como a questão da identidade sexual – hoje discutida no país à luz da queda de braço entre a tolerância e o preconceito – que move os passos do protagonista de Mãe só há uma, em cartaz a partir de quinta-feira nos cinemas.
Em seu longa anterior, o premiadoQue horas ela volta?(2015), a diretora paulista espelhou, no turbulento reencontro entre mãe e filha, o abismo social e as relações de poder que sobrevivem do período colonial. Agora, ela avança sobre o tema da identidade em sua forma mais profunda, que é saber quem se é e o que se quer ser. Anna escreveu o roteiro de Mãe só há uma inspirada no chamado "caso Pedrinho" – rapaz sequestrado quando bebê de uma maternidade de Brasília, em 1986, e que por 16 anos acreditou que sua raptora fosse sua mãe verdadeira. Trata-se, porém, de uma adaptação bastante livre do episódio, destaca Anna (leia entrevista com ela abaixo).
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Na trama, a descoberta da real identidade do adolescente Pierre (vivido pelo estreante Naomi Nero) dá-se no momento em que o garoto de 17 anos tateia sua orientação sexual: transa com meninas, sente desejo por meninos, usa calcinha, pinta as unhas e se maquia. Em meio a esse turbilhão sensorial, Pierre vem a saber que a mulher (Dani Nefussi) a quem ele e a irmã pequena, também sequestrada, chamam de mãe é uma criminosa. A nova realidade que se impõe ao guri é atender por Felipe e viver com seus pais biológicos, interpretados por Matheus Nachtergaele e novamente por Dani, em um inventivo embaralhamento da figura materna proposto pela diretora.
Não será fácil a construção de laços afetivos de Pierre/Felipe com sua nova família, sobretudo diante do estranhamento do pai que tenta domar o que toma por excentricidades do filho desgarrado. E é sobre esses conflitos – e também sobre a conexão que o recém-chegado estabelece com o irmão caçula que ganhou do destino – que Anna pavimenta, com a sensibilidade que lhe é característica, o caminho em direção ao diálogo, ao afeto e ao respeito, elementos fundamentais, vale sempre ressaltar, para a harmonia doméstica e o convívio social.
Como se deu o processo de partir de um caso policial real para abordar, em Mãe só há uma, a questão de identidade de gênero?
Quando conheci esse caso, me perguntei: “Caramba, se nada daquilo que você era é mais, como é que se segue em frente?”. O que atraiu no caso foi o que ele tem de universal, o simbolismo que representa a todo adolescente mostrar quem realmente é e as dificuldades que alguns pais têm em aceitar a queda das expectativas sobre os filhos. Voltei a sair à noite depois de muitos anos e vi que a discussão de gênero se tornou muito presente. Incorporei isso à história. É um filme sobre identidades, a de gênero entre outras. Antes, era a tragédia do menino com duas mães.
A exemplo de Que horas ela volta?, seu novo filme também parte de um drama familiar para abordar questões muito debatidas no país.
São filmes radicalmente diferentes. Que horas ela volta? é basicamente uma crítica ao nosso separatismo social. Mas acabou levantando uma discussão sobre machismo e feminismo. Foi algo que me surpreendeu. Esse novo filme traz a questão da identidade de gênero, que também passa pela discussão do masculino e do feminino, da estereotipia da mulher puramente feminina e da estereotipia do homem puramente masculino.
Mãe só há uma ganhou no Festival de Berlim um prêmio voltado ao universo LGBT. Enquadrar o filme em um determinado nicho não é restritivo?
Fizemos sessões para a comunidade LGBT, que viu retratado o seu universo, para mães, que disseram que era para elas, e para adolescentes, que viram um filme para jovens. Cada um vê o filme que quer. Isso mostra um grau de humanidade para todo mundo entender.
Como você recebeu o convite para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas nos EUA?
Foi surpreendente, até pensei que fosse trote. Acho excepcional isso de eles quererem aumentar a representatividade das mulheres, dos negros e também dos estrangeiros. A sociedade está clamando que todos os espaços espelhem a diversidade.
Como você avalia o período de instabilidade política que o Brasil atravessa?
Aquele show dos deputados (na votação do impeachment da presidente Dilma Roussef) fez todo mundo ver que nossa representatividade é muito ruim. Foi um choque. Acho que a médio e a longo prazo vai servir para limpar o Congresso. Vejo isso pelo lado bom. O lado ruim é vermos ações arbitrárias, uma justiça com dois pesos e duas medidas, um teatro sendo montado sem que a gente saiba aonde vai dar.
Mãe só há uma
De Anna Muylaert
Drama, Brasil, 2016, 82min, 16 anos.
Estreia quinta-feira no circuito.
Cotação: Muito bom