Conhecido por abordar de forma visceral e libertária temas que entrelaçam relações de poder, sexo e violência – e também por seu temperamento por vezes beligerante –, o cineasta pernambucano Cláudio Assis fez um filme família. Apresenta em Big jato, seu quarto longa, um sutil desvio de rota. É o primeiro que não tem como matriz um roteiro original do parceiro Hilton Lacerda e também o primeiro sem a classificação para maiores de 18 anos. Em cartaz nos cinemas, indicado para maiores de 16 anos, Big jato adapta o livro homônimo autobiográfico lançado em 2012 pelo jornalista cearense Xico Sá.
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Cláudio e Xico são amigos e compartilham trajetórias muito parecidas. Nasceram e foram criados no interior – o diretor em Caruaru, e o jornalista, em Crato – e começaram suas carreiras em Recife. No romance, Xico relembra a infância passada na região do Cariri, nos anos 1970, e a influência na sua formação de duas figuras: o pai, chamado de Velho, que sustenta a família limpando fossas, e o tio, Nelson, radialista local apaixonado pelos Beatles e que inflama no garoto a paixão pela poesia. Quem vive os dois personagens é o paulista Matheus Nachtergaele, que Cláudio dirigiu em Amarelo manga (2002), Baixio das bestas (2006) e A febre do rato (2012).
– O Xico é padrinho do meu filho (Francisco de Assis Moraes, que vive o jornalista com 10 anos). Quando ele estava escrevendo o livro, conversávamos muito. Tem coisa ali comum na nossa infância. A gente tinha essa ideia de falar de merda, que é onde todo mundo é igual – diz Assis.
A trama foi atualizada para os dias de hoje, explica o diretor, em razão da onipresença dos Beatles no livro. Sem ter como bancar os custos de direitos autorais, a trilha original, assinada pelo DJ Dolores, emula o clima da época com a fictícia banda Os Betos, que teria sido antecessora e inspiradora do quarteto britânico. Big jato incorpora elementos fabulares para encenar, com graça e lirismo, o rito de passagem do garoto (na adolescência, vivido por Rafael Nicácio) que se vê dividido entre as obrigações que cumpre acompanhado o pai, tipo afetuoso com rompantes autoritários catalisados pela cachaça, e o escapismo pela arte vislumbrado com o tio "doidão".
– É uma fábula, sim, mas o meu DNA está ali – destaca Assis, reforçando a presença de elementos provocadores em sua filmografia, como o louco da cidade e suas poesias delirantes (papel de Jards Macalé) e frases de impacto como “Quem não reage, rasteja”. Segundo o diretor, o dito, impresso no para-choque do caminhão da empresa familiar Big Jato, é pertinente com os tempos que o Brasil vive:
– É um momento ímpar, de instabilidade política, de caretice, indo para a direita cada vez mais, evangélicos tomando conta. A sociedade está fodida, o cinema está careta. A gente tem que tentar. Ou reage ou rasteja. A arte é feita para provocar, pensar, contribuir para uma mudança. Não faço cinema para ganhar dinheiro. Não faço cinema de encomenda. Faço cinema de ideias.
Big jato ganhou cinco prêmios no Festival de Brasília de 2015: melhor filme, ator (Matheus), atriz (Marcélia Cartaxo, que vive a mãe de Xico), roteiro (Anna Carolina Francisco e Hilton Lacerda) e trilha sonora (DJ Dolores).
Em outubro próximo, Cláudio e Matheus deve começar a filmar o quinto longa do diretor, Piedade, que terá no elenco também Irandhir Santos, de A febre do rato.
– Ninguém tem piedade de ninguém. Piedade é praia de Recife onde tem mais tubarão. Será um filme sobre relações humanas, de tubarão, ser humano invadindo o mar, o mar invadindo a terra. Matheus e Irandhir estão escaladíssimos desde o início, vão fazer um casal de engenheiros.
Perguntado sobre o recente episódio que seu colega e conterrâneo Kleber Mendonça Filho protagonizou no Festival de Cannes, quando apresentou o filme Aquarius protestando ao lado da atriz Sônia Braga e outros integrantes de elenco e equipe contra o afastamento da presidente Dilma Rousseff, Assis afirma:
– Estou do lado dele, foi bacana. E agora não se pode punir o cara (Kleber é curador de cinema da Fundação Joaquim Nabuco, centro cultural de Recife vinculado ao governo federal), assim como não podem me punir por ter atrapalhado a sessões do filme da Anna Muylaert, que é minha amiga.
Um assunto leva ao outro. O cineasta refere-se ao imbróglio ocorrido em agosto de 2015, quando ele o também diretor Lírio Ferreira interromperam e tumultuaram uma sessão com debate do filme Que horas ela volta? apresentada por Anna em Recife. Entre as reprimendas sofridas, a Fundação Joaquim Nabuco comunicou à época que Assis e Ferreira ( e suas produções) ficariam um ano banidos da programação do local.
– Está tudo resolvido. Mas vou cobrar dela (Anna) o dinheiro dos ingressos que vendeu a mais me usando (risos). E sei lá (sobre a punição) da Fundação. Aquela fundação é careta, a coisa mais reacionária que tem em Pernambuco. Olha, eu estou muito feliz porque pela primeira vez estou (com Big jato) entrando com 30 cópias em 13 capitais. Antes foram sempre 10 cópias. É maravilhoso.