A Guerra Fria que por décadas tensionou as relações entre Estados Unidos e União Soviética transcorreu em diferentes fronts: da rede de espionagem global ao volume do arsenal nuclear, da corrida espacial à interferência nos países a eles alinhados. E foi diante de um tabuleiro de xadrez que essa queda de braço ganhou nomes e rostos: Bobby Fischer e Boris Spassky.
Em 11 de julho de 1972, eles deram início, em Reykjavik, na Islândia, ao "jogo do século", série de partidas pelo campeonato mundial de xadrez em que o prodígio americano desafiou o representante da longeva hegemonia soviética na modalidade. O filme O Dono do Jogo, em cartaz nos cinemas, reconstitui com competência os bastidores do embate, imprimindo na narrativa uma carga de suspense e tensão insuspeitas numa trama em que os dois protagonistas permanecem sentados um diante do outro, maquinando e antevendo movimentos de peões, cavalos, bispos, torres e rainhas para proteger o rei. Mérito do diretor Edward Zwick e de seus ótimos atores: um surpreendente Tobey Maguire como Fischer e o sempre correto Liev Schreiber no papel de Spassky. O resultado é eficiente tanto para os mais familiarizados com os meandros do milenar jogo quanto para os alheios à sua complexa engrenagem.
O Dono do Jogo é ainda uma concisa cinebiografia de Fischer, um dos maiores jogadores de xadrez de todos os tempos – para muitos, o maior, o Pelé do tabuleiro. Sua fulgurante carreira – tornou-se um grande mestre internacional com apenas 15 anos –, entretanto, foi abreviada por transtornos psicológicos ilustrativos da figura do gênio excêntrico e maluco.
Leia mais
"Capitão América: Guerra Civil" é um dos mais sólidos filmes da Marvel
Filme "O Futebol" mostra reencontro entre pai e filho à sombra dos 7 a 1
Documentário passa em revista vida e obra do polêmico Carlos Imperial
Fischer deixou como legado um repertório de jogadas e inovações estratégicas referenciais no xadrez, algumas delas, para espanto dos especialistas, usadas pela primeira vez justamente na decisão do título mundial contra Spassky. A sexta partida da série foi a mais impressionante demonstração do talento do enxadrista americano, tanto que Spassky, desconcertado com o nó tático que levou, foi quem primeiro levantou para aplaudi-lo em pé, gesto seguido pela plateia boquiaberta.
Destacar o contexto histórico e político que cercou o duelo é um trunfo que O Dono do Jogo também alcança. Naquele momento, com a Guerra do Vietnã transformando-se em constrangedor fiasco, a possibilidade de os EUA baterem a URSS em uma disputa na qual o inimigo era soberano mobilizou a imprensa, a opinião pública e, em especial, a Casa Branca. A pressão sobre Fischer foi enorme. O solitário e emocionalmente instável enxadrista subitamente se viu transformado em pop star e salvador da pátria.
E o fascinante na trajetória do paranoico Fischer é que em momento algum, combinando esperteza, senso de oportunidade, consciência crítica, genialidade nata e peculiar loucura, ele deixou-se ser manipulado. Foi de fato o dono de jogo, movimentando tanto as peças sobre o tabuleiro quanto os rumos de sua errática vida após a consagração mundial. Tipos transgressores como ele, que contrariam o senso comum de comportamento, são facilmente rotulados como loucos. Fischer pareceu seguir a máxima mutante: “louco é quem me diz, mas não é feliz”.